Jamil Chade

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Reportagem

Com repressão e abusos, sauditas usam R$ 16 tri para reinventar país

O nome escolhido para a nova transformação é simbólico: NEOM, ou novo futuro. No deserto da Arábia Saudita, a criação de um complexo de cidades e estruturas apontam para uma reorganização de sociedade. O projeto faz parte de um plano maior dos sauditas de reinventar o próprio país, já pensando em uma era pós petróleo.

Nada, porém, indica que existirão concessões para uma eventual participação política mais ampla dos cidadãos. O regime quer mudar o país, para garantir que nada mudará em seu poder.

O complexo NEOM inclui a construção de várias novas cidades na Arábia Saudita, cada qual com uma função. A mais surreal delas é a cidade The Line, onde 9 milhões de pessoas viverão numa linha reta de 170 quilômetros.

Não haverá carros, e um trem vai levar uma pessoa de uma ponta a outra em apenas 20 minutos. Dois prédios de 500 metros de altura cada ainda estão sendo previstos, enquanto espelhos vão servir como uma espécie de muro para separar a nova urbanização do deserto.

Com emissões zero e organizado graças à inteligência artificial, o local é a visão da distopia. Ironicamente, sua obra é bancada justamente com as receitas do petróleo que, nas últimas décadas, permitiu que os sauditas acumulassem o maior fundo soberano do mundo, com US$ 770 bilhões.

O cenário futurístico já começou a ser construído, com as autoridades em Riad insistindo que se trata do maior canteiro de obras do planeta. Oficialmente, são 260 escavadoras na região e 2.000 tratores na operação. Por semana, eles retiram 2 milhões de metros cúbicos de terra, o equivalente a 800 piscinas olímpicas.

Nada disso ocorre apenas por um capricho do príncipe herdeiro Mohamed Bin Salman, que se apresenta como o "reformador". As obras fazem parte da estratégia estabelecida pelo regime para que os sauditas repensem a inserção internacional do país e sua própria base econômica.

Conhecido como Visão 2030, o projeto prevê investimentos de US$ 3,2 trilhões (R$ 16 trilhões) para modernizar o país, reduzir a dependência ao petróleo e preparar a sociedade para uma nova era. Mas nada disso inclui nem a ampliação dos direitos para determinados grupos e nem uma abertura política.

A meta, segundo as autoridades, é abandonar uma economia com base no petróleo para erguer uma economia com base na produtividade. O desenvolvimento industrial ainda prevê estabelecer uma marca, a Made in Saudi, aumentar os investimentos de tecnologia e, no fundo, recriar a identidade nacional.

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Os sauditas ainda apontam que querem deixar de ser o maior produtor de petróleo do mundo para ser o maior produtor de energia. Abdullah Al Thebiti, representante do programa de desenvolvimento industrial, explica que a meta é de que, no futuro, 50% do consumo de energia dos sauditas venha de fontes renováveis. Eles prometem que a receita do petróleo será "apenas" 50% do PIB.

Novo posicionamento no mundo

Parte do projeto prevê ainda um reposicionamento do país no mundo. Os sauditas querem ser o hub logístico do planeta, aproveitando-se de sua posição entre três continentes —asiático, africano e europeu. Até 2030, a meta é construir 2.000 quilômetros de estradas e aeroportos, por onde passariam 330 milhões de pessoas por ano.

Expectativa de vida de 80 anos, mas sem direitos políticos

Mas o plano saudita pretende transformar também a sociedade, sem abrir mão do atual regime e sem qualquer concessão em termos de direitos políticos.

No programa criado para garantir uma "melhor qualidade de vida" aos sauditas até 2030, as autoridades explicaram que usaram diversos parâmetros e padrões internacionais, como o da OCDE ou da Economist Intelligence Unit. Nenhum deles, porém, se refere à Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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Mais uma vez, as metas são claras: garantir que a população tenha uma expectativa de vida de 80 anos, ter três cidades sauditas entre as 100 melhores do mundo para se viver e estar entre os 10 lugares mais competitivos do mundo.

A "qualidade de vida", portanto, significa garantia de segurança, prosperidade econômica, aumentar imunidade em relação às drogas, acesso à cultura, entretenimento, esportes e recreação.

Repressão, execuções e sem liberdade de expressão

Para as entidades de direitos humanos, a suposta modernização do país ocorre num clima no qual as autoridades prenderam dissidentes pacíficos, intelectuais públicos e ativistas de direitos humanos e sentenciaram pessoas a penas de prisão de décadas por postar em mídias sociais.

"As práticas abusivas nos centros de detenção, incluindo tortura e maus-tratos, detenção arbitrária prolongada e confisco de bens sem qualquer processo legal claro, continuam sendo generalizadas", afirma a Human Rights Watch.

Segundo a entidade, as reformas anunciadas pelo príncipe Mohamed Bin Salman "são gravemente prejudicadas pela repressão generalizada sob o comando do governante". Em 12 de março de 2022, as autoridades sauditas executaram 81 homens, a maior execução em massa em décadas, apesar das recentes promessas de reduzir o uso da pena de morte.

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O grupo ainda denuncia o despejo forçado de centenas de pessoas para o desenvolvimento da NEOM. A entidade se diz alarmada pelos planos para "The Line". A cidade em camadas verticais utilizará fortemente a inteligência artificial e a tecnologia de "interface homem-máquina". "Isso gera "preocupações sobre o uso da tecnologia digital para vigiar os futuros residentes", dizem os ativistas de direitos humanos.

"O governo saudita é famoso por reprimir a dissidência pública e tem um histórico bem estabelecido de tentativas de se infiltrar em plataformas tecnológicas e usar tecnologia avançada de vigilância cibernética para espionar dissidentes", diz a entidade.

Segundo eles, dezenas de ativistas e defensores dos direitos humanos sauditas continuaram a cumprir longas sentenças de prisão por criticarem as autoridades ou defenderem reformas políticas ou mais direitos para mulheres.

Em 9 de agosto de 2022, um tribunal condenou Salma al-Shehab, uma estudante de doutorado saudita da Universidade de Leeds, no Reino Unido, a 34 anos de prisão, por "perturbar a ordem e a estrutura da sociedade", aparentemente com base apenas em sua atividade no Twitter. No mesmo dia, os tribunais sauditas condenaram Nourah bin Saeed al-Qahtani a uma longa pena de 45 anos de prisão por "usar a Internet para destruir o tecido social do país".

Os imigrantes também são alvos de abusos, segundo a entidade de direitos humanos. De fato, a economia da Arábia Saudita depende de trabalhadores migrantes. Mais de 6,3 milhões de estrangeiros ocupam empregos de escritório e de serviços na Arábia Saudita, constituindo mais de 80% da força de trabalho do setor privado. Mas, segundo a Human Rights Watch, a Arábia Saudita realiza prisões e deportações regulares de trabalhadores migrantes sem documentos. "Os migrantes não têm o direito de contestar sua detenção e deportação", diz.

Submissão: Mulheres precisam de autorização de homem para sair da prisão

Apesar de algumas reformas, as autoridades continuam a implementar um sistema de tutela masculina que exige que as mulheres obtenham permissão de um homem para se casar, sair da prisão ou obter algumas formas de assistência médica sexual e reprodutiva.

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As novas leis estabelecem disposições que podem facilitar e até desculpar a violência doméstica, inclusive o abuso sexual no casamento.

O apoio financeiro do marido é ainda especificamente condicionado à "obediência" da esposa ao marido, e ela pode perder o direito a esse apoio se se recusar, sem uma "desculpa legítima", a ter relações sexuais ou viajar com ele.

A idade legal para o casamento é 18 anos, mas a lei permite que os tribunais autorizem o casamento de uma criança se ela tiver atingido a puberdade e se for possível provar que o casamento proporciona um "benefício estabelecido" para a criança.

Mega eventos e até neve no deserto

Nada disso parece ser um problema para o regime. Para se apresentar ao mundo com um novo rosto, os palcos já estão montados. Os sauditas serão a sede da Expo 2030. Em 2034, será a vez de receber a Copa do Mundo.

Mas uma das maiores polêmicas foi a decisão de dar ao regime saudita o direito de sediar a Olimpíada de Inverno da Ásia, em 2029. Os jogos ocorrerão numa cidade que ainda não existe, Trojena, projetada para estar concluída em 2026 e que promete ter neve "o ano todo".

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Para a Human Rights Watch, há uma tentativa dos sauditas de "limpar sua reputação, manchada por um histórico deplorável de direitos humanos, por meio do financiamento de instituições, figuras e eventos esportivos e de entretenimento luxuosos".

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