Jamil Chade

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Opinião

Nos corpos abandonados em Nova York, o obituário de uma democracia

Percorrer a cidade de Nova York é se deparar com o reflexo das contradições de um sistema que não faz questão de atender a todos e que esvazia qualquer significado da palavra cidadão. Enquanto nas telas gigantes espalhadas pela cidade candidatos e debates dão a impressão de que se vive uma democracia plena, basta desviar o olhar para se deparar com corpos abandonados.

Ao longo dos anos, estive mais de uma dezena de vezes nesse centro financeiro e do poder. Mas, desde que cheguei para esta nova etapa, algo me pareceu extremamente explícito: a pobreza escancarada.

Se por dias tentei digerir essa realidade, agora eu tive a confirmação de que não se trata apenas de uma percepção.

Um levantamento realizado pela Universidade de Columbia revelou que a pobreza voltou a aumentar em Nova York, depois de anos de queda. O fim dos programas sociais de apoio na pandemia é o principal motivo, assim como a inflação.

Os dados são de 2022 e 2023 e mostram que:

23% dos residentes da cidade não têm renda suficiente para arcar com as necessidades básicas, como alimentos e moradia. Em 2018, essa taxa foi de 18%. O índice de NY é duas vezes superior à média nacional dos EUA.

2 milhões de moradores vivem abaixo da linha da pobreza, o que representa uma renda abaixo de US$ 20,3 mil ao ano. Apenas em 2022, esse número aumentou em 500 mil pessoas.

A pobreza atinge 1 em 4 crianças.

Em 2023, o desemprego atingiu 9,3% dos afroamericanos, três vezes mais que o índice entre os brancos.

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O raio-X fica ainda mais indecente quando se constata que Nova York produz 8% do PIB dos EUA. Se fosse um país, estaria entre a 10ª e 12ª maior economia do mundo.

A cidade ainda concentra o maior número de bilionários do planeta. São 104 fortunas que, sozinhas, dariam conta da pobreza no mundo.

Sem-teto sentado à mesa na Times Square, em Manhattan, Nova York, em abril de 2024
Sem-teto sentado à mesa na Times Square, em Manhattan, Nova York, em abril de 2024 Imagem: Charly Triballeau/AFP

Nova York ainda se apresenta como o principal centro financeiro do mundo e se orgulha de ter nos diamantes seu maior item de exportação.

Portanto, numa cidade onde o barulho é uma espécie de trilha sonora imposta, é o silêncio desses corpos abandonados é ensurdecedor.

No início do século 21, líderes internacionais concordavam que nossa geração tinha a oportunidade histórica de ser a primeira a erradicar a pobreza.

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Nas ruas de Nova York está o obituário dessa utopia e uma prova da experiência contemporânea da pobreza. O golpe sobre um projeto que imaginava que se poderia manter o sistema de exploração intacto e, ao mesmo tempo, acabar com a miséria.

O contrário de um país pobre não é um país rico. Mas um país justo. E, neste aspecto, os dados da realidade americana e da cidade de Nova York falam por si só.

Em minhas conversas e entrevistas, notei como o "excepcionalismo americano" é sempre evocado. Os Estados Unidos de hoje, porém, parecem ser excepcionais no paradoxo entre a abundância e o fato de ter os mais altos índices de pobreza do mundo desenvolvido.

Obs: aos interessados em entender a dimensão estrutural da pobreza e dos extremos nos EUA, sugiro o poderoso livro Poverty, by America, de Matthew Desmond. De forma brutalmente honesta, ele revela como essa pobreza é generalizada no país mais ricos do mundo e, pior, estabelecida a partir de um design deliberado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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