Jamil Chade

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Reportagem

Enfraquecido por potências, pacto na ONU é aprovado sob troca de farpas

Era para ser um marco na história da ONU. Depois de quatro anos de negociações, a Cúpula do Futuro teve início neste domingo em Nova York e aprovou um mapa para resgatar os organismos internacionais e o compromisso dos governos com o clima, direitos humanos e o desenvolvimento social.

Chamado de Pacto do Futuro, o texto tem a meta de estabelecer o caminho das negociações e objetivos da comunidade internacional pela próxima década.

A esperança era de que o acordo fosse aprovado por consenso. Mas, de forma inesperada e com presidentes na sala, a delegação russa rompeu o protocolo e decidiu apresentar novas exigências. Sua ameaça era de que iriam bloquear a adoção do Pacto do Futuro se seus interesses não fossem acolhidos.

O texto acabou sendo aprovado, mas a manobra por parte de Moscou enfraqueceu seu peso e escancarou a polarização no mundo. Os russos e seus aliados deixaram claro que se distanciavam do acordo.

O pacto prevê ações para iniciar uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, a revisão dos organismos financeiros para incluir países emergentes, ações sobre a dívida dos mais pobres, e o início de um trabalho internacional para regular plataformas digitais e mesmo sobre Inteligência Artificial.

Mas, para diplomatas de diferentes partes do mundo, o texto foi amplamente esvaziado ao longo dos últimos meses. Governos ricos se recusavam a se comprometer com reformas mais ambiciosas de organismos financeiros e de indicar como ocorreria a ampliação do Conselho de Segurança da ONU. O governo dos EUA ainda se recusou a abrir mão do veto, enquanto dezenas de pontos sobre desarmamento e a transformação do clima em um tema de segurança defendidos por potências ocidentais obrigaram os governos a reduzir a ambição do texto original.

No clima, tampouco houve um compromisso maior dos europeus em garantir que os recursos prometidos aos emergentes seriam liberados.

Os líderes das cinco potências do Conselho de Segurança sequer viajaram para Nova York para a cúpula, enviando apenas ministros e dando um sinal político de que o documento não teria o peso que se desejava.

Se não bastasse, o impasse na sessão final ainda aprofundou o mal-estar. "Não há nada a comemorar", disse o embaixador russo Dmitry Polyanskiy. "A Rússia se distancia do consenso do pacto", insistiu. "Esse foi um processo que ampliou a perda de confiança", lamentou. Para ele, o Ocidente "usurpou a negociação".

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O que ocorreu

Durante a madrugada de sábado para domingo, dois dos três pontos exigidos de última hora por Moscou foram solucionados. Mas o Kremlin queria que o pacto dessa garantias que a ONU não teria o direito de entrar em assuntos domésticos de estados. Ao longo do processo de negociação, o Kremlin foi o principal obstáculo em temas como desarmamento e as reformas dos organismos internacionais.

Enquanto líderes entravam na sala e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminhava para seu lugar, a disputa ganhava corpo.

De forma inesperada, a delegação russa pediu a palavra para uma questão de ordem e criticou o pacto. Para Moscou, não houve um período de consultas suficiente e acusou o Ocidente de tentar manobrar um acordo que favorecesse o bloco.

"Isso não pode ser chamado de multilateralismo Isso é uma derrota para a ONU e um acordo para atender a um grupo pequeno de países", disse a chefia da delegação russa. Moscou pediu para que o processo seja mantido, sem um prazo para terminar. Moscou teve o apoio da Nicarágua e Belarus.

O processo negociador ainda continua e delegações estavam buscando formas de salvar o pacto. Mas os russos insistiram em votar uma emenda, ameaçando se distanciar do acordo.

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Congo, em nome dos países africanos, saiu em defesa do pacto e alertou que a entidade está numa "encruzilhada". "Precisamos mostrar nossa união e habilidade de dar respostas aos desafios globais", disse.

O bloco fez um apelo para que a Cúpula não tomasse uma decisão sobre a emenda proposta pelos russos e que não houvesse um voto.

O fracasso da entidade se revelava até mesmo na falta de interpretação simultânea, obrigando os africanos a repetir seu discurso.

México também saiu em defesa do Pacto e pediu que os governos se recusassem a votar a emenda russa. A alegação dos latino-americanos foi de que a proposta dos russos jamais foi circulada para consultas. O governo de Camarões também apoio o Pacto.

A disputa ganhou intensidade depois que a Venezuela tomou a palavra, em nome do Irã e Síria, e como forma de defender a postura da Rússia. Caracas rejeitou a tentativa dos africanos de impedir que a emenda russa fosse votada. "Isso mostra a versão arrogância do Ocidente", disse.

Para os venezuelanos, o impasse foi resultado da "falta de vontade politica para negociar" por parte do Ocidente.

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A delegação acusou o pacto de ser seletivo e não defendeu "o princípio sagrado de não intervenção". Belarus, sob o controle de Moscou, também defendeu a proposta de Moscou

Na votação, foi aprovada a proposta do Congo de que não houvesse sequer um voto sobre a proposta russa. 143 países, inclusive o Brasil, saíram em defesa de não permitir que o Kremlin apresentasse a emenda. Apenas sete países votaram ao lado de Moscou.

Os aplausos, ao ser anunciado o resultado, escancararam a polarização. O Pacto do Futuro acabou sendo aprovado. Mas incapaz de curar as feridas entre as principais potências.

Qualificando o pacto de "histórico", o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou: "Estamos aqui para tirar o multilateralismo do abismo".

Poucos ousam concluir que o pacto será suficiente para atingir esse objetivo.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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