Mundo está no 'purgatório' e vive 'colapso climático', alerta chefe da ONU
Num dos discursos mais pessimistas já feitos nos mais de 70 anos da Assembleia Geral da ONU, o chefe da instituição alertou: o organismo está esgotado. António Guterres, ao subir ao palco para abrir o evento nesta terça-feira (24), fez um raio-X dramático da situação internacional.
Nosso mundo está em um turbilhão. Estamos em uma era de transformação épica, enfrentando desafios diferentes de todos os que já vimos, desafios que exigem soluções globais.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Segundo ele, as divisões geopolíticas continuam se aprofundando, o planeta continua esquentando. As guerras continuam sem nenhuma pista de como terminarão. "E a postura nuclear e as novas armas lançam uma sombra escura", disse.
Para ele, a situação do mundo é "insustentável". "Não podemos continuar assim", alertou.
Estamos nos aproximando do inimaginável - um barril de pólvora que corre o risco de engolir o mundo.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Impunidade
Uma das denúncias de Guterres se refere à impunidade que domina o mundo. "Esses mundos de impunidade, desigualdade e incerteza estão conectados e em colisão", disse.
"O nível de impunidade no mundo é politicamente indefensável e moralmente intolerável", afirmou. Guterres destacou que, hoje, um número cada vez maior de governos e outras pessoas se sentem no direito de ter um cartão "livre da cadeia".
Eles podem atropelar o direito internacional. Eles podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos para as convenções internacionais de direitos humanos ou para as decisões de tribunais internacionais. Eles podem ignorar o direito humanitário internacional. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar totalmente o bem-estar de seu próprio povo. E nada acontecerá.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Segundo ele, a era de impunidade está em todos os lugares e apontou como a guerra na Ucrânia "está se alastrando sem sinais de abrandamento".
Mundo no purgatório
Guterres também apontou como a instabilidade em muitos lugares do mundo é um subproduto da instabilidade nas relações de poder e nas divisões geopolíticas. "Apesar de todos os seus perigos, a Guerra Fria tinha regras. Havia linhas linhas vermelhas", constatou.
Segundo ele, isso não existe hoje.
"Não temos um mundo unipolar. Estamos nos movendo para um mundo multipolar, mas ainda não chegamos lá. Estamos em um purgatório de polaridade", disse. "E nesse purgatório, mais e mais países estão preenchendo os espaços das divisões geopolíticas, fazendo o que querem sem nenhuma responsabilidade", criticou. Guterres insiste que, diante dessa situação, é fundamental reafirmar a Carta da ONU.
Reforma do Conselho e recusa de ceder poder
Para Guterres, as desigualdades globais "são refletidas e reforçadas até mesmo em nossas próprias instituições globais", e ele defendeu reformas urgentes.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO Conselho de Segurança das Nações Unidas foi criado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial. A maior parte da África ainda estava sob domínio colonial. Até hoje, a África não tem assento permanente no principal conselho de paz do mundo. Isso precisa mudar.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Segundo ele, a mudança também deve acontecer com a arquitetura financeira global, criada há 80 anos.
"O combate às desigualdades exige a aceleração da reforma da arquitetura financeira internacional", disse. "Nas últimas oito décadas, a economia global cresceu e se transformou. As instituições de Bretton Woods não acompanharam esse ritmo", afirmou.
"Elas não podem mais fornecer uma rede de segurança global - ou oferecer aos países em desenvolvimento o nível de apoio de que precisam", declarou Guterres.
O português admitiu que não tem ilusões sobre os obstáculos à reforma do sistema multilateral.
"Aqueles com poder político e econômico - e aqueles que acreditam ter poder - sempre relutam em mudar", disse. "Mas o status quo já está esgotando seu poder. Sem reforma, a fragmentação é inevitável, e as instituições globais se tornarão menos legítimas, menos confiáveis e menos eficazes", alertou.
Colapso climático e referências ao presidente Lula
No palco da ONU, Guterres fez ainda um duro relato sobre a situação de meio ambiente.
Estamos em um colapso climático. Temperaturas extremas, incêndios violentos, secas e enchentes épicas não são desastres naturais. São desastres humanos, cada vez mais alimentados por combustíveis fósseis. Nenhum país é poupado. Mas os mais pobres e mais vulneráveis são os mais atingidos.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Para ele, isso "é apenas o começo".
Guterres, ainda assim, não desiste de ver avanços. "Estamos a caminho de ultrapassar o limite global de um aumento de temperatura de 1,5 grau", disse. "Mas à medida que o problema se agrava, as soluções estão melhorando", apontou.
"Os preços das energias renováveis estão caindo, a implantação está se acelerando e vidas estão sendo transformadas por energia limpa acessível e barata", constatou.
O secretário-geral aposta num futuro sem combustíveis fósseis é certo. Mas alerta que uma transição justa não está garantida.
Sua avaliação é de que, até 2035, as economias avançadas devem reduzir as emissões de energia em 80% e os mercados emergentes em 65%. O G20 é responsável por 80% do total de emissões.
"Eles devem liderar o esforço, mantendo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e as respectivas capacidades à luz das diferentes circunstâncias nacionais.
Em seu discurso, Guterres elogiou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o único líder internacional citado.
Tenho a honra de trabalhar em estreita colaboração com o Presidente Lula do Brasil - que é presidente do G20 e anfitrião da COP30 - para garantir o máximo de ambição, aceleração e cooperação.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Para ele, o financiamento é essencial e a COP29, em Baku em novembro, deve apresentar uma nova meta financeira significativa.
Crítica ao petróleo: "poluidores devem pagar"
Guterres também fez duas críticas ao que chamou de "situação maluca". "Continuamos a recompensar os poluidores para que destruam nosso planeta", disse. "O setor de combustíveis fósseis continua a embolsar enormes lucros e subsídios, enquanto as pessoas comuns arcam com os custos da catástrofe climática, desde o aumento dos prêmios de seguro até a perda de meios de subsistência", atacou.
Ele pediu que países do G20 transfiram o dinheiro dos subsídios e investimentos em combustíveis fósseis para uma transição energética justa, que estabeleçam um preço efetivo para o carbono e que implementem fontes novas e inovadoras de financiamento - incluindo taxas de solidariedade sobre a extração de combustíveis fósseis.
Aqueles que assumem a culpa devem pagar a conta. Os poluidores devem pagar.
António Guterres, secretário-geral da ONU
Concentração de riqueza
Num ataque ainda contra a concentração de renda, Guterres destacou como dos 75 países mais pobres do mundo, um terço está em situação pior hoje do que há cinco anos. Mas, durante esse mesmo período, os cinco homens mais ricos do mundo mais do que dobraram sua riqueza.
"Um por cento dos habitantes do planeta detém 43% de todo o patrimônio financeiro mundial. Em nível nacional, alguns governos aumentam as desigualdades ao concederem prêmios fiscais maciços às empresas e aos ultra-ricos - em detrimento dos investimentos em saúde, educação e proteção social", denunciou.
Enquanto isso, 80% das metas sociais estabelecida pela ONU até 2030 estão fora dos trilhos e podem não ser atingidas.
IA e controle
O chefe da ONU também alertou para o rápido crescimento das novas tecnologias e que isso "representa outro risco existencial imprevisível".
"A Inteligência Artificial mudará praticamente tudo o que conhecemos, desde o trabalho, a educação e a comunicação até a cultura e a política", disse.
Sabemos que a IA está avançando rapidamente, mas para onde ela está nos levando? Para mais liberdade - ou mais conflito? Para um mundo mais sustentável ou para uma maior desigualdade? Para sermos mais bem informados ou mais fáceis de manipular?
António Guterres, secretário-geral da ONU
Ele denunciou o fato de que um "punhado de empresas e até mesmo indivíduos já acumularam um enorme poder sobre o desenvolvimento da IA, com pouca responsabilidade ou supervisão".
"Sem uma abordagem global para seu gerenciamento, a inteligência artificial poderia levar a divisões artificiais em toda a linha - uma Grande Fratura com duas Internet, dois mercados, duas economias - com cada país forçado a escolher um lado e enormes consequências para todos", alertou. Em sua avaliação, é na ONU que o diálogo deve ocorrer.
Nada dura para sempre
Guterres concluiu alertando que a mudança é inevitável. "Em toda a história humana, vemos impérios surgindo e caindo; velhas certezas desmoronando; mudanças tectônicas nos assuntos globais. Atualmente, nosso rumo é insustentável", disse.
"É do interesse de todos nós gerenciar as transformações épicas que estão ocorrendo; escolher o futuro que queremos e guiar nosso mundo em direção a ele", disse, alertando que o mundo está de olho nos líderes para superar essa situação de crise.
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