Brasileira Irmã Rosita vence maior prêmio global de ajuda a refugiados
A gaúcha Rosita Milesi, 79, é a vencedora do Prêmio Nansen, o mais prestigioso da ONU e dedicado ao reconhecimento do trabalho de instituições e pessoas que atuaram pelo resgate e atendimento de refugiados pelo mundo. O prêmio, uma espécie de Nobel do trabalho com refugiados, já teve vencedores como Angela Merkel e Eleonor Roosevelt.
Membro da ordem Scalabrini, ligada à Igreja Católica e reconhecida pelo serviço aos refugiados, a Irmã Rosita é apenas a segunda brasileira a ser escolhida, entre mais de 400 nomes considerados para o prêmio. Em 1985, Dom Paulo Evaristo Arns também recebeu a homenagem.
Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), a advogada lutou por quase 40 anos pela dignidade de refugiados e imigrantes. Desde 2017, seu trabalho na fronteira entre o Brasil e a Venezuela passou a ser uma referência para a ONU. Além dela, outras quatro mulheres foram homenageadas por trabalhos em suas respectivas regiões do mundo.
"Com muita frequência, as mulheres enfrentam riscos maiores de discriminação e violência, especialmente quando são forçadas a fugir", disse Filippo Grandi, o alto comissário da ONU para Refugiados. "Mas essas cinco vencedoras mostram como as mulheres também estão desempenhando um papel fundamental na resposta humanitária e na busca de soluções", disse.
"Com base em sua fé católica e liderando pelo exemplo, a Irmã Rosita Milesi lidera o Instituto de Migração e Direitos Humanos (IMDH) em Brasília, por meio do qual ajudou milhares de pessoas deslocadas forçadamente a ter acesso a serviços essenciais, como abrigo, saúde, educação, assistência jurídica e muito mais", disse o Acnur, ao anunciar o prêmio.
Com sede em Brasília, o IMDH tem atuado em vários países da América Latina. O instituto ainda foi uma das primeiras organizações a trabalhar na fronteira entre Brasil e Venezuela, em 2017, em apoio aos imigrantes venezuelanos.
"Ela também coordena a RedeMIR, uma rede nacional de 60 organizações que atua em todo o Brasil, inclusive em regiões remotas de fronteira, para apoiar refugiados e migrantes. Ela também publica artigos acadêmicos sobre deslocamento e migração como parte de seu trabalho de defesa", destaca.
Segundo a agência da ONU, a gaúcha teve um impacto significativo no cenário jurídico do Brasil, incluindo seu papel na formação da lei de refugiados de 1997 do país — que está alinhada com os padrões internacionais, como a Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados de 1951 e a Declaração de Cartagena de 1984, um instrumento não vinculativo adotado por vários países da América Latina e do Caribe que expandiu a definição de refugiado.
Ela também teve um papel importante na criação da lei de migração de 2017, que consagrou proteções essenciais para pessoas deslocadas e reduziu o risco de apatridia — quando a pessoa não é considerada nacional de nenhum país, conforme a sua legislação.
Eis os principais trechos da entrevista de Rosita Milesi ao UOL:
Merkel, Eleonor Roosevelt, Dom Paulo Arns já ganharam esse prêmio antes da senhora. O que esse prêmio representa? De que forma ele dá forças para o teu trabalho?
Rosita Milesi: Ao ver figuras tão exponenciais e brilhantes que mereceram o prêmio Nansen, me sinto muito aquém de qualquer honraria que possa me colocar ao lado de pessoas tão extraordinárias e que as tenho como mestras e mestres, mas de quem me sinto tão distante.
Suavizo esta honra imerecida do prêmio, dedicando-a como reconhecimento que não decorre só do meu trabalho, mas que é o resultado de muitas forças e atores: milhares de refugiados, refugiadas, migrantes e apátridas que conheci e pude ajudar ao longo de minha vida, inumeráveis colaboradores, tantos agentes de órgãos públicos e de organizações que confiaram em mim e que me apoiaram, dando-me lições de esperança nos caminhos que compartilhamos.
Minha trajetória não foi algo planejado, direcionado para que a essa altura da vida eu chegasse a uma láurea tão importante. O que fiz e continuo fazendo foi ter uma diretriz muito clara: trabalhar em favor de migrantes e refugiados, especialmente dos mais vulneráveis, como mulheres e crianças. Fui abençoada nessa caminhada porque muito do que tentei fazer ao longo desses anos rendeu frutos e ajudou muitas pessoas, e isso me encoraja a seguir fazendo. Na verdade, esse prêmio é das centenas de pessoas que lutaram comigo por essa causa, e dos milhares de refugiados com que tive oportunidade de encontrar, escutar, ajudar, animar para sua nova etapa, os quais tanto me ensinaram sobre esperança, vida, fé e solidariedade.
O Brasil se transformou num local de destino de refugiados nos últimos anos, com o número crescendo de forma importante. Quais são os principais motivos dessa onda e quais os maiores obstáculos para recebê-los?
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberLamentavelmente, o mundo se depara com o contínuo aumento de refugiados e refugiadas, e isso se reflete também no Brasil. Em 2023, o IMDH atendeu, em Brasília e em Roraima, 12.882 pessoas de 72 diferentes nacionalidades. Nesse conjunto, o maior número veio de aproximadamente 10 nacionalidades, seguindo-se, depois, contingentes em menor número. As dez maiores nacionalidades foram: Venezuela, Cuba, Colômbia, Haiti, Paquistão, Bangladesh, Afeganistão, Peru, Gana e Marrocos.
Nem todas essas pessoas chegaram ao Brasil em 2023, mas esse total reflete a presença expressiva de pessoas que buscaram apoio em nossa instituição. Isso significa que se encontravam em situação de necessidade, seja para documentação, seja para outras carências que afetavam sua vida e exercício pleno da cidadania. Os motivos desses movimentos de pessoas em busca de proteção, de asilo ou de acolhida por não terem condições de continuar em seus países são, em grande parte, a violação de direitos humanos, as guerras e conflitos nos países de origem e os desastres climáticos que se desvelam em várias formas, provocando destruição e morte. No Brasil, temos pessoas que vieram por essas e outras causas.
Acolhê-las com dignidade exige que nosso país avance na implementação de políticas públicas de integração. Isso é fundamental para que se possa considerar que o país está atento e ativo na implementação do ciclo completo de acolher, proteger, promover e integrar refugiados, refugiadas, migrantes e apátridas.
O mundo vive uma onda de construção de muros. O que isso significa, na opinião da senhora?
Busco falar reiteradamente que a causa dos migrantes e refugiados exige uma nova mentalidade de todos e todas, mas especialmente nas sociedades de acolhida. Atualmente, o paradigma é de preconceito e de xenofobia em algum grau. Há movimentos para, inclusive, criminalizar essas pessoas e desumanizá-las. Tenhamos presente que os migrantes e refugiados não mudam de país por escolha pessoal, e sim como resultado de deslocamentos forçados pelas mais variadas razões.
Essas pessoas carregam consigo muitos talentos e habilidades. Principalmente, elas trazem sua cultura e isso contribui muito para o engrandecimento da sociedade de acolhida. Isso precisa ser considerado: acolher não é um fardo, é uma oportunidade de aprender e crescer.
O que a senhora sente quando vê políticos usando o tema da imigração e de refúgio como ameaça e instrumento de votos?
Uma das diretrizes que sempre segui ao longo da vida foi estar aberta ao diálogo. Essencialmente, não há grupo político ou social com quem eu não tenha dialogado ao longo dos anos, o que não significa que eu não tenha convicções e uma ideia sobre como as coisas deveriam ser feitas. Como disse há pouco, existe muita distorção na visão que a sociedade tem dos temas da migração e do refúgio e esse conjunto de equívocos tem a ver com o uso político dessa pauta por muitas pessoas.
É muito triste constatar que políticos mundo afora obtém ganhos promovendo o ódio contra essas pessoas, incentivando a divisão entre os seres humanos de maneira irresponsável e provocando dor e sofrimento. A imprensa também tem um papel a cumprir: que veicule os exemplos positivos de migrantes e refugiados na sociedade. Eles são muitos e funcionam para desestigmatizar populações inteiras. É uma medida de justiça.
O Brasil é realmente um país acolhedor, ou apenas para alguns?
O Brasil hoje possui uma legislação relativa a refúgio e migração bastante avançada, algo de vanguarda, e com a qual eu modestamente tive oportunidade de contribuir quando de sua elaboração e na tramitação junto Congresso Nacional. Temos uma boa legislação, que ainda depende de alguns desdobramentos, claro. Mas é importante que essa legislação seja o caminho para que a prática, lá na ponta, ofereça a cidadania plena a migrantes e refugiados. Que o acesso seja facilitado e que as políticas públicas sejam pensadas para que sejam efetivas e realmente façam a diferença.
A sociedade brasileira precisa se dar conta de que somos um país resultante da migração ao longo de séculos, e que isso fez quem somos. Lamentavelmente há xenofobia, rejeição, discriminação em relação a esta população que busca em nosso país e em nossas comunidades a oportunidade de contribuir com sua presença cultural, com seu trabalho, com o aporte de seus talentos e capacidades. Trabalhemos para que esta postura adversa contra refugiados e migrantes seja eliminada. Lembremos e lancemos nossos olhos para os milhares de pessoas que atuam em centenas de organizações sociais, instituições de fé, grupos comunitários, órgãos públicos e de defesa de direitos que atuam junto aos refugiados, migrantes e apátridas. Fortaleçamos esta dimensão positiva e construtiva a favor da solidariedade, da acolhida, da proteção e integração desta população. É um ato de humanidade.
Nunca houve tantos refugiados no mundo como hoje. O que isso representa?
Representa que vivemos em um mundo cada vez mais desafiador e que exigirá que nós nos concentremos em nossa dimensão humana. Ao que parece, os contingentes afetados por guerras e pelas mudanças climáticas serão crescentes e isso precisará ter como impacto o aumento da empatia. Somos todos irmãos e irmãs, integramos a família humana, vivemos na Casa Comum - o Planeta Terra, como diz o Papa Francisco. Os deslocamentos forçados aumentam, mais do que nunca a solidariedade, a colaboração e a cooperação entre os estados se faz necessária. Mas igualmente, entre as pessoas, nos ambientes comunitários, sociais, laborais que nossas atitudes sejam agregadoras e positivas.
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