Fim do 'sonho americano' e abalo na classe média alimentam voto em Trump
Com a missa de domingo encerrada numa das principais ruas do Harlem, um grupo de meia-idade de americanos deixou a igreja lotada para se somar uma fila interminável, numa calçada nas proximidades. Eles haviam acabado de ouvir a eufórica pregação de um pastor que tentava convencê-los a confiar na ajuda divina.
A fila, naquela manhã, tinha sido formada depois que a empresa de transporte de Nova York anunciou que estava contratando e que iria registrar os nomes dos interessados. Milhares apareceram para as poucas vagas oferecidas.
Tinha cor a fila que dava voltas nas esquinas do bairro. Assim como tem cor a pobreza nos EUA, afetando de forma desproporcional os afro-americanos. Em silêncio e lentamente, aquela marcha desviava de indigentes pela calçada, enquanto cada um os candidatos agarrava em um formulário cuidadosamente preenchido com a esperança de obter dignidade.
Faltando duas semanas para a eleição americana, as pesquisas de opinião mostram uma disputa acirrada. Mas, acima de tudo, são retratos de um sonho dilacerado. Enquanto republicanos e democratas ficam calculando votos, o que os levantamentos revelam é a existência de milhões de pessoas sem destino, um campo fértil ao populismo.
Se do lado republicano a ofensiva de Donald Trump recorre ao nacionalismo e à suposta proteção ao trabalhador, o discurso não ocorre por acaso. As pesquisas revelam que a classe média americana encolheu nas últimas décadas, enquanto sua frustração aumentou.
De acordo com o Pew Research Center, 61% dos americanos eram considerados como classe média em 1971. Em 2023, essa taxa caiu para 51%. Já a camada mais pobre - que ganha menos de US$ 35 mil por ano - aumentou de 27% para 30%, enquanto a parcela dos mais ricos aumentou de 11% da população para 19% entre 1971 e 2023.
O que o estudo revela, na prática, é que a sociedade americana ficou mais desigual e com seus extremos mais distantes. E que o "sonho americano" - uma verdadeira ideologia que moveu um país durante um século - é hoje apenas uma ilusão.
O levantamento também revela que, entre os negros, 45% estão na categoria mais pobre, contra apenas 9% entre os mais ricos, com renda acima de US$ 250 mil por ano.
O governo de Joe Biden vem insistindo que os dados oficiais revelam que a miséria nos EUA caiu sob sua administração. Ao final de 2023, eram 36,8 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. A taxa caiu de 11,5% dos americanos em 2022 para 11,1% no ano passado.
Mas o cálculo oficial é contestado por economistas, que apontam que apenas a renda não é suficiente para medir a qualidade de vida. A medição foi criada ainda nos anos 60, calculando apenas o custo de três refeições por dia.
O próprio censo americano implementou uma nova medida, que inclui o impacto de programas sociais e uma cesta de gastos que examina até mesmo o preço da internet. O resultado é que, por esse critério, a pobreza aumentou nos EUA entre 2022 e 2023, passando de 12,4% para 12,9%. Entre as crianças, a taxa aumentou em 1,3 ponto percentual, para um total de 13,7%.
Já um levantamento realizado pela Universidade de Columbia revelou que a pobreza voltou a aumentar em Nova York, depois de anos de queda. O fim dos programas sociais de apoio na pandemia é o principal motivo, assim como a inflação.
Os dados são de 2022 e 2023 e mostram que:
- 23% dos residentes da cidade não têm renda suficiente para arcar com as necessidades básicas, como alimentos e moradia. Em 2018, essa taxa foi de 18%. O índice de NY é duas vezes superior à média nacional dos EUA;
- 2 milhões de moradores vivem abaixo da linha da pobreza, o que representa uma renda abaixo de US$ 20,3 mil. Apenas em 2022, esse número aumentou em 500 mil pessoas;
- A pobreza atinge uma em quatro crianças;
- Em 2023, o desemprego atingiu 9,3% dos afro-americanos, três vezes mais que o índice entre os brancos.
Newsletter
JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO raio-X fica ainda mais indecente quando se constata que Nova York produz 8% do PIB dos EUA. Se fosse um país, estaria entre a 10ª e 12ª maior economia do mundo. A cidade ainda concentra o maior número de bilionários do planeta. São 104 fortunas que, sozinhas, dariam conta da pobreza no mundo.
Os dados condizem com a realidade contada por alguns daqueles americanos em busca de emprego. Isaac Foster, de 52 anos, conta que seu salário não é mais suficiente para arcar com as despesas de sua família. "Temo pelos meus filhos", disse. "Tudo está muito difícil, mesmo para quem tem trabalho", afirmou.
Ele garante que seu voto irá para Kamala Harris. Mas diz que "entende" quem busca outra opção.
Tyrell Perry, de 21 anos, procura sem primeiro emprego formal e faz mistério sobre em quem vai votar. "Não sei nem se meu voto faz diferença", lamentou. Ao ser questionado sobre há quanto tempo estava na fila para se registrar para o trabalho, ele ainda foi irônico. "E que diferença faz isso para quem tem todo o tempo do mundo?", questionou.
As últimas pesquisas de opinião apontam que a população negra americana votará amplamente por Kamala Harris, mantendo o histórico apoio aos democratas desde os anos 90.
Mas sinais de que homens negros poderiam estar migrando em sua preferência fez com que a candidata se deslocasse para missas no último domingo, na busca por impedir que esses votos sejam perdidos. Sua promessa foi de que, sob seu governo, projetos seriam estabelecidos para ampliar as oportunidades à educação e o acesso a empregos com melhores salários.
Num levantamento realizado pelo New York Times e o Siena College, Harris teria 70% dos votos dos homens negros. Em 2020, os democratas acumularam 85% dos votos dessa população. Enquanto isso, Trump registrou um aumento de seis pontos percentuais de apoio desses homens negros.
Mas não é apenas a frustração da população afro-americana que alimenta a campanha dos republicanos. Entre trabalhadores, muitos deles brancos, a percepção é de que não existe mais espaço para o "sonho americano", uma frase cunhada em 1931 pelo historiador James Truslow Adams, e que passou a simbolizar a possibilidade de uma mobilidade social real.
E essa frustração não é nova e vem sendo explorada por Trump. De cada cinco crianças que nasciam em 1940, todas tinha uma expectativa de ter uma vida melhor que seus pais. A partir de 1984, apenas duas de cada cinco crianças poderiam esperar esse destino. O senador Bernie Sanders resumiu essa realidade ao alertar que, para muitos americanos, "o sonho havia se transformado num pesadelo".
Tanto Kamala Harris como Donald Trump sabem da importância desse eleitorado e, nos últimos dias, ambos têm focado todos os esforços de campanha nos estados Michigan, Pennsylvania, Wisconsin e Nevada onde a diferença nas pesquisas está em menos de 2%. São nesses mesmos estados onde os trabalhadores de fábricas representam 20% do eleitorado.
Ambos tentam convencer o eleitorado desiludido que são seus projetos os que vão recuperar a esperança de dias melhores.
Trump, com uma receita tão simplista quanto mentirosa, aposta em fechar o mercado americano para produtos que possam competir com os nacionais. A mesma lógica é aplicada aos novos imigrantes, com os republicanos tentando convencer os estrangeiros que já estão no país que eles estão sendo ameaçados por seus parentes que, hoje, tentam fazer o mesmo caminho.
Mas, na eleição considerada como a mais decisiva para a democracia americana, seduzir a população de que o mito do progresso econômico está ao alcance de todos parece cada vez mais difícil.
Numa pesquisa realizada pela Pew Research Center, em setembro, 41% dos entrevistados indicaram que o sonho americano não era mais algo que eles poderiam desejar viver.
A taxa dos desiludidos explode quanto maior a miséria. Dois terços daqueles considerados como pobres já desistiram de acreditar nesse sonho, uma realidade que enterra o mito que dava sustentação ao projeto quase messiânico de uma nação.
Deixe seu comentário