Carter enganou regime militar para receber denúncias de crimes da ditadura
Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos morto neste domingo com cem anos, manteve um amplo contato com dissidentes brasileiros durante o regime militar e não se intimidou durante sua viagem ao País em encontrar uma forma de se reunir com vozes contrárias ao governo. Isso é o que revelam documentos guardados em um arquivo em Genebra. Um desses dissidentes com canal aberto com Carter era dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo de São Paulo.
Cartas e conversas entre os dois escancaram o objetivo mútuo em forçar o regime militar no Brasil a se abrir. Os documentos fazem parte do arquivo do Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça.
Apesar de terem mantido contatos nos Estados Unidos, em especial em um evento na Universidade de Notre Dame, dom Paulo e Carter iniciaram o diálogo sobre a situação no Brasil em 1977. Naquele ano, o cardeal brasileiro enviou uma carta no dia 29 de outubro ao presidente americano alertando sobre a repressão.
Junto com a carta, dom Paulo anexou uma lista de nomes de pessoas que haviam desaparecido. Essa lista foi enviada meses antes da revelação pela imprensa brasileira na época de uma outra lista dada pelo cardeal a Carter. O documento, assim, demonstra que a relação entre os dois ia bem além de um simples encontro, que acabaria ocorrendo no ano seguinte.
Na carta de 1977, dom Paulo aponta para uma situação crítica. "Nos últimos anos, eu tenho tido o triste privilégio de dar conselhos pastorais e conforto a muitos parentes e amigos de prisioneiros políticos que desapareceram", escreveu Arns ao presidente Carter.
"Apesar de não ser minha intenção de sugerir que você interfira em nome desses prisioneiros políticos desaparecidos, eu acredito que deva ser alertado sobre o fato de que ainda carregamos esse fardo em nossos corações, junto com parentes e amigos", disse.
Na carta, dom Paulo esperava que a viagem que estava marcada de Carter ao Brasil naquele ano fosse uma "bendição mútua: beneficiando nosso sofrido povo e fortalecendo seu ministério na área de direitos humanos".
Poucas semanas depois, Carter responderia. O presidente americano alertava que havia adiado sua visita ao Brasil para 1978. Mas deixou claro que estava preocupado já com a situação no País. "Esses casos (enviados por dom Paulo) enfatizam a importância do estado de direito, com seu direito a habeas corpus e processos devidos por cortes civis independentes", alertou Carter.
"Tais medidas podem não eliminar violações a direitos humanos, mas podem pelo menos mostrar que o governo estava comprometido com um sistema de Justiça ordenado", afirmou o presidente americano.
A carta ainda mostra o prestígio do cardeal brasileiro. "Seu trabalho em nome da dignidade humana me fazem sentir honrados de dividir o campo com você na Universidade Notre Dame", escreveu Carter, que indicou esperar encontrar dom Paulo no ano seguinte.
Manobras
Mas esse encontro prometia ser delicado e ao mesmo tempo explosivo. Uma primeira tentativa foi a de incluir a cidade de São Paulo no itinerário de Carter, o que daria a possibilidade de um encontro com dom Paulo. Mas essa possibilidade foi abandonada. Primeiro por conta distância do aeroporto de Viracopos, que seria usado, e para não provocar de forma excessiva o governo.
O Rio de Janeiro foi escolhido como a possibilidade do encontro. Mas, para impedir a denúncia, o governo e parte da Igreja fizeram questão de montar uma reunião entre Carter, Arns e cinco arcebispos, vários dos quais tinham posições favoráveis ao governo militar. O encontro não seria a ocasião de Arns para revelar a repressão.
Mas a diplomacia americana havia encontrado uma forma de driblar o protocolo do governo brasileiro. Dom Paulo mantinha uma amizade com Cyrus Vance, então secretário de Estado norte-americano, e que o colocou no carro que levaria Carter do Rio ao aeroporto do Galeão. O trajeto de 46 quilômetros foi a ocasião que dom Paulo precisava para fazer suas denúncias.
A conversa entre os dois começou com Carter questionando sobre a censura que a revista de dom Paulo - São Paulo - sofria no Brasil. "É por causa de você, você é a o cardeal de São Paulo?", questionou Carter. Dom Paulo indicou que esperava que essa não fosse a razão. Carter ironizou: "Pode ser que seja por minha amizade contigo".
Arns perguntou a Carter o que ele esperava da Igreja na luta contra a repressão. O presidente americano foi explícito em sua crítica, alertando que, em alguns lugares, "a Igreja não fez o que deveria fazer". Segundo ele, os defensores de direitos humanos "sofrem restrições" da Igreja, e não apoio.
Durante o trajeto, dom Paulo não trataria apenas do Brasil, mas aproveitaria para reivindicar uma posição dos Estados Unidos mais favorável à população dos países no Terceiro Mundo. O cardeal apresentou um memorando com três pontos e que deixava claro que tinha suas sérias reservas à política externa americana.
Arns queria demonstrar que o regime militar apenas existiu graças ao apoio americano e indicou que estava na hora então de Washington desfazer o que havia começado.
O primeiro ponto do memorando justamente se referia à responsabilidade da Casa Branca na proliferação de regimes militares repressivos pelo mundo como resultado da doutrina americana de direitos humanos. Dom Paulo, assim, mostrava uma independência em relação não apenas ao governo militar brasileiro, mas também sinalizava que não era apenas um aliado automático dos Estados Unidos.
O segundo ponto do documento apresentado pelo cardeal também era um ataque aos americanos. Desta vez, o alvo eram as multinacionais, alertando que suas atuações não contribuíam ao desenvolvimento da sociedade brasileira e de países em desenvolvimento, já que exploravam com baixos salários e direcionavam seus lucros a suas economias de origem.
O memorando era concluído com um alerta sobre a situação de milhões de pessoas pelo mundo oprimidas por sua posição política, base religiosa ou raça.
Dom Paulo não se limitaria ao memorando. Outra carta entregue pelo brasileiro a Carter era um apelo secreto assinado por ele, pelo cardeal asiático Stephen Sou Huan Kim e pelo bispo africano Donald Lamont.
No documento, os líderes religiosos alertavam que não se silenciariam mais diante da opressão econômica e política vivida por "países inteiros". "Não podemos ficar quietos, nem queremos, enquanto o pão de cada dia e a dignidade pessoal são negadas a certos níveis de pessoas e até a nações inteiras", alertaram.
"Não podemos ficar quietos, nem queremos, enquanto pessoas são condenadas por conta de suas convicções religiosas e políticas", indicaram. "Não podemos ficar quietos, nem queremos, enquanto ideologias são usadas como armas para escravizar seres humanos", alertaram. Os religiosos ainda criticaram a "tortura institucionalizada" existente "em todo o mundo".
O documento ainda é concluído com um ataque direto aos Estados Unidos. "Não podemos ficar quietos, nem queremos, enquanto o egoísmo de alguns países e grupos impedem a construção de um mundo mais humano, em que cada pessoa pode viver com dignidade", concluíram.
Dom Paulo terminou a conversa entregando presentes a Carter, sua esposa e sua filha, Amy.
Carter falou sobre a "beleza da mulher brasileira" com cardeal
A conversa ganhou um tom descontraído quando o presidente americano insistiu com o cardeal sobre a beleza das mulheres brasileiras. Foi a vez de Amy, porém, repreender o presidente americano, seu próprio pai. "Pai, você já disse isso ontem", criticou. Carter garantiu a sua filha que a primeira-dama Rosalynn continuava sendo a mulher mais bonita.
Ao chegar ao aeroporto do Galeão, Carter foi friamente recebido pelos militares, em uma rápida cerimônia de despedida. Arns evitou as câmeras e deixou o local antes mesmo da decolagem de Carter em direção à Nigéria.
Internamente, o governo brasileiro evitou revelar o conteúdo das conversas entre o americano e as autoridades militares. Com a saída de Carter do Brasil, o porta-voz do Itamaraty garantiu à imprensa que o presidente americano não havia mencionado os temas de direitos humanos. Para a imprensa estrangeira, a Casa Branca desmentiu a versão do Itamaraty e confirmou que o tema havia sido central na viagem.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.