Em mensagem, Mauro Cid admite que joias são "bens de interesse público"
Ao falar das joias recebidas pela Presidência da República como presente do governo saudita, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), chegou a admitir, em 5 de março deste ano, que os itens eram de "interesse público, mesmo que sejam privados". Ele ainda tirou fotos de imagens da Lei 8.394 e sublinhou o trecho em que a norma descreve que, em caso de venda, a União teria preferência.
As mensagens e imagens do celular de Cid foram obtidas com exclusividade pela coluna. Procurado, o advogado de Bolsonaro e ex-secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, não quis comentar o teor dos diálogos. A defesa de Mauro Cid não retornou aos contatos da reportagem.
A menção de Cid ao fato das joias serem "bens de interesse público" contradiz o movimento recente da defesa de Bolsonaro que informou a intenção de pedir a devolução das joias ao TCU alegando que os itens pertenceriam ao ex-presidente.
"Caramba"
Em conversa com Wajngarten, dois dias depois de o jornal O Estado de S. Paulo revelar a entrada ilegal do colar de diamantes e da existência de um segundo kit de joias, o Rose Gold, Cid demonstra nervosismo ao verificar que a imprensa descobriu o episódio.
"Parece que hoje deu uma acalmada", escreve Cid a Wajngarten no início da manhã de 5 de março. O advogado responde "magina" e encaminha a reportagem da Folha mostrando o recibo do kit do Rose Gold, que entrou no Brasil sem declaração em outubro de 2021.
Cid lê a mensagem e diz: "caramba!!". Na sequência, ele começa a responder uma série de perguntas de Wajngarten sobre o relógio. Cid envia uma cópia do recibo e, às 9:21, responde por áudio.
"Esse segundo relógio é o que tá aí. É o mesmo tratamento que seria dado ao primeiro. Foi entregue o relógio e deu entrada no acervo. A mesma coisa que foi feita no primeiro ia ser feita no segundo", afirma Cid (ouça o áudio abaixo). O ex-ajudante de ordens não esclarece no áudio qual seria o primeiro relógio ou se está fazendo referência ao primeiro kit de joias citado nas reportagens que trata do colar de diamantes e das joias femininas.
Mas a conversa entre os dois continua e Wajngarten questiona sobre o segundo kit: "Quem entrou com esse? O Bento?". Cid responde apenas: "Não sei". Na sequência, o ex-ajudante de ordens, começa a enviar uma série de mensagens sobre a legislação do acervo de presidentes e tratamento de presentes.
Entre as imagens enviadas, Cid encaminha uma da Lei 8.394, de 30 de dezembro de 1991, e a foto vem com um círculo verde no trecho "I - em caso de venda, a União terá direito de preferência". Depois ele tenta ligar quatro vezes para Wajngarten entre 11h31 e 12h48, mas não é atendido pelo advogado.
Cid, no entanto, não menciona em momento algum das mensagens que o relógio tinha sido levado por Bolsonaro no avião presidencial no fim de dezembro de 2022 para os EUA e que o kit tinha sido colocado à venda em Nova York. O ex-ajudante de ordens também não escreve que tinha mandado o relógio retornar ao país depois de ser orientado por outro assessor de Bolsonaro, o coronel Marcelo Câmara, sobre irregularidades na venda.
"Interesse público"
Horas mais tarde, às 17:12 do dia 5 de março, os dois voltam a trocar mensagens e Cid diz que não existiria legislação sobre o tema o que, para ele, permitiria que Bolsonaro ficasse com as joias.
"São bens de interesse público. Pergunta para eles se os ben (sic) de Collor, FHC, Lula e Dilma pagaram algum imposto?", escreve Cid. Wajngarten diz: "Não é isso".
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Quero receberO advogado então questiona Cid onde está o relógio e Cid diz que estaria no "acervo do Pr", em referência ao acervo de Bolsonaro. Wajngarten então escreve a Cid: "Não existe culpa ou absolvição pela comparação simples".
No dia anterior, em 4 de março, Cid chegou a dizer a Wajngarten que não sabia onde estava o acervo de Bolsonaro. Esta data também é a mesma em que a PF (Polícia Federal) acredita que o relógio retornou dos EUA devido a uma outra troca de mensagens entre Cid e o segundo-tenente Osmar Crivelatti. Ao saber que o kit já estava em mãos do antigo subordinado, Cid escreve: "ufa".
TCU
Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) estabeleceu normas mais precisas sobre a Lei 8.394 e determinou que os presentes, mesmo que entregues em evento oficial, devem ir para o da União, em vez de virarem patrimônio particular do presidente após o fim do mandato.
Antes disso, usava-se a interpretação de que o que era entregue em cerimônia podia ficar com os mandatários. O presidente até pode usar os presentes enquanto estiver no cargo, mas, ao fim do mandato, só pode levar itens considerados "personalíssimos" que são roupas, alimentos e perfumes. A PF apura um esquema de desvio de presentes dados à Presidência e desviados para o patrimônio pessoal de Jair Bolsonaro.
"O pior é que está tudo documentado"
No sábado, a coluna revelou outro diálogo entre os dois. Cid enviou, às 19h36, do dia 3 de março, a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo que revelava que as peças, avaliadas em cerca de R$ 5 milhões, foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos, em 2021, com um assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e que o ex-presidente tinha tentado recuperar os itens antes de viajar para os EUA, em dezembro de 2022.
Após receber a reportagem de Cid, Wajngarten escreve ao militar: "Eu nunca vi tanta gente ignorante na minha vida". No diálogo, porém, não fica claro a quem o advogado se refere.
Cid então responde a Wajngarten: "Difícil mesmo. O pior é que está tudo documentado".
De acordo com as mensagens, o advogado Fábio Wajngarten passou a defender a entrega das joias para o TCU a partir do dia 7 de março. Ao comentar uma reportagem que mencionava que o kit estava guardado em um galpão, Wajngarten escreve a Cid: "Acho que tínhamos de disponibilizar o bem imediatamente através do advogado". Naquele momento, Cid manifesta apoio: "Perfeito!". Em 9 de março, Wajngarten escreve novamente a Cid: "Tem que devolver imediatamente. É impressionante como ninguém pensa".
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