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Abandonados, afegãos esperaram por 20 anos que EUA os livrassem do Taleban
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Há 20 anos, quando desembarquei de um avião soviético Antonov-26 em Faizabad, no norte do Afeganistão, encontrei pessoas que tinham a esperança sincera de que os Estados Unidos as livrariam do domínio do Taleban.
Na Província de Badakshan, a cidade de Faizabad era a capital da Aliança do Norte, a coalizão político-militar que contava com suporte americano para lutar contra o Taleban, um grupo com visões extremistas ao interpretar os preceitos islâmicos, como proibir as mulheres de trabalhar e estudar, executar seus opositores e impor castigos físicos (apedrejamento e amputações). As mulheres sempre foram as vítimas preferenciais da truculência religiosa, apesar de o Taleban matar homens que se opunham ao regime.
O Taleban também tinha laços estreitos com a Al Qaeda de Osama Bin Laden, o arquiteto de 11 de Setembro, atentado que mudou o mundo depois de 2001. A conjunção de interesses era evidente. Os afegãos que lutavam contra o Taleban avaliavam, corretamente, que a queda do grupo seria uma questão de tempo com o socorro de Washington.
Atiqhllah Darkhani, 21 anos, considerava os bombardeios aéreos americanos uma "ótima notícia". Ele trabalhava como intérprete para uma ONG irlandesa que distribuía alimentos e sempre ouvia as últimas notícias pela rádio BBC. "Estamos felizes porque vai ser bom para o futuro do Afeganistão. O Taleban vai deixar o poder."
Outro candidato a intérprete dos jornalistas que chegavam ao Afeganistão pelo enclave dominado pela Aliança do Norte, Said Hamed, também com 21 anos, manifestava um claro desejo: "Quero que a América (EUA) mate o Taleban". Naqueles dias, os rebeldes da Aliança do Norte contavam com o apoio americano para preparar o cerco a Cabul, a capital do país recuperada neste último domingo pelo Taleban.
"As bombas dos americanos vão nos ajudar a derrotar o Taleban", dizia Mohammad Anwer, 30 anos. Ele levava um caminhão cheio de suprimentos para os soldados da Aliança do Norte no Vale do Pansheer, um caminho para Cabul no meio de montanhas áridas e deslumbrantes.
As expectativas de curto prazo de Darkhani, Hamed e Anwer foram atendidas. O Taleban seria derrotado em pouco tempo. As mulheres, tratadas como cidadãs de segunda classe, poderiam voltar a sonhar em não ser subjugadas. Mas não era bem assim.
Apesar das críticas ao radicalismo do Taleban, os integrantes da Aliança do Norte também mantinham comportamentos machistas e fundamentalistas, como obrigar as mulheres a usar a burka, a longa vestimenta com uma máscara que cobre todo o corpo, inclusive o rosto. Na altura dos olhos, há uma pequena tela de renda. Apenas as mãos ficam à mostra. "A mulher não deve ser vista por estranhos. Só pelo marido ou pelos homens da sua casa", afirmava Atiqhllah Darkhani, algo irritado com as perguntas do repórter a respeito do status das cidadãs de segunda classe.
Durante quase um mês cobrindo o conflito no Afeganistão como enviado especial da "Folha de S.Paulo" após o atentado contra as Torres Gêmeas de Nova York, encontrar essas mulheres totalmente cobertas era a experiência mais incômoda. Elas abaixavam a cabeça quando passavam por um homem. Costumavam andar do outro lado da rua se um estranho andasse na sua direção. Falavam baixo e pouco com os vendedores quando saíam de casa para fazer compras.
Na questão da corrupção, a Aliança do Norte também tinha os seus pecados. Tudo se movia a propina, desde as passagens de avião e helicóptero para vir e voltar ao Tadjiquistão aos gastos mais comezinhos com tradutores, aluguel de jipes e alimentação. Com inúmeras divisões internas, havia sinais claros de que os rebeldes da Aliança do Norte só se manteriam no poder com o aval dos americanos. Quando esse endosso caiu, o Taleban voltou ao poder, como mostraram as cenas caóticas do aeroporto de Cabul com centenas de pessoas tentando fugir do país no fim de semana.
Esse desastre humanitário começou a ser desenhado no ano passado, quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou um acordo de paz com o Taleban. Em Doha, no Qatar, o negociador americano, Zalmay Khalilzad, e o mulá Abdul Ghani Baradar assinaram o texto e, em seguida, deram um aperto de mãos que deixava evidente a satisfação do Taleban.
Em troca da retirada das tropas americanas em 2021, o Taleban se comprometeu a parar de fazer ataques internos, a não apoiar terroristas e a negociar com o governo afegão. Não foram cumpridas as partes de cessar os ataques e de negociar com o governo, derrubado nas últimas duas semanas. Sobre não apoiar terroristas, é algo que ainda precisará ser observado.
Os EUA perderam a mais longa guerra que já travaram e deram reconhecimento público ao seu principal inimigo. Após o tratado, simplesmente decidiram abandonar os afegãos à própria sorte. Durante duas décadas, mantiveram um governo fantoche no poder e não reconstruíram as instituições. Agora, entregaram o país de bandeja ao Taleban porque o custo político e econômico da guerra se tornou pesado demais.
Do ponto de vista geopolítico, os EUA abrem espaço para China, Rússia e Paquistão aumentarem sua influência sobre o Afeganistão e a região.
Há um dano colateral doloroso: não há dúvida de que o Taleban voltará a agir com violenta repressão política e religiosa, sobretudo em relação às mulheres. O tratado de paz foi uma saída americana pela porta dos fundos, exatamente como ocorreu no Vietnã em 1975.
Derrotado em semanas em 2001, o Taleban é o único lado vitorioso 20 anos depois. A guerra ao terror destruiu países e vidas pelo planeta. É fato que os EUA atingiram, com preço alto para nações como Afeganistão, Líbia e Síria, o objetivo de evitar um novo ataque de terroristas estrangeiros em solo americano. No entanto, a ameaça maior aos Estados Unidos hoje é doméstica: a dos supremacistas brancos alimentados pelo trumpismo.
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