Ricos que pagam faz-me-rir a juízes reforçam que Justiça para pobres é mito
Os escândalos de venda de sentenças envolvendo o Superior Tribunal de Justiça e outros tribunais, como o de Mato Grosso do Sul, reforçam algo que é amplamente conhecido por qualquer um que ganhe até dois salários mínimos: a interpretação da lei, não raro, depende de quanto você tem em conta.
Não apenas por movimentar caras bancas de advogados enquanto as Defensorias Públicas amargam falta de recursos. Mas também porque, se você tem o bastante para fazer sorrir a parcela dos magistrados que está à venda, o Brasil é uma delícia.
Não é porque o Poder Judiciário foi fundamental para manter a democracia viva por aqui em um momento em que o Poder Executivo chafurdava em golpe de Estado e o Legislativo estava bêbado de emendas parlamentares que os problemas históricos de falta de transparência da Justiça devem ser esquecidos.
A venda de sentença, que beneficia quem tem dinheiro para pagar, é absurda, mas pequena se comparada com a quantidade de magistrados que decide não de olho na lei, mas alinhados com os interesses da classe social ao qual pertencem. E, deixando claro, juiz, desembargador e ministro não costumam vir da favela.
Enquanto a proporção de negros nas prisões for maior que a de negros na sociedade, podemos dizer que Justiça é uma construção porcamente ajambrada por aqui, por exemplo. Ou vocês acham normal que, diante da mesma quantidade de erva, um jovem branco ser encaminhado para casa com uma bronca e um jovem negro mandado para o xilindró?
Acreditam que é defensável que magistrados, diante de casos de trabalho escravo, defendam fortemente os empregadores mesmo com toneladas de provas, imagens, testemunhas e documentos coletados por auditores fiscais e procuradores do trabalho? Cansei de sair de julgamentos com a impressão de que o advogado de defesa dos escravagistas não estava sozinho.
Aliás, o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba, acusado de manter Sônia Maria de Jesus em situação de escravidão doméstica por quase 40 anos, foi autorizado pelo STF e pelo STJ a levar a trabalhadora de volta para a casa dele. Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada por um grupo especial de fiscalização do poder público federal em junho do ano passado.
Só recentemente, graças a uma habeas corpus coletivo obtido no STF pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CaDHu), grávidas e mães de filhos pequenos que estão presas sem condenação judicial e não tenham cometido crime violento começaram a ver efetivado o direito à prisão domiciliar, previsto em lei. O gancho para o HC foi que Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio Sergio Cabral, desfrutava do mesmo direito.
Não são todos os magistrados que operam nessa lógica. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, até por sua natureza, muitos juízes, desembargadores e ministros demonstram clara preocupação com os direitos dos mais vulneráveis. Mas, também lá, há os que agem como escudeiros dos que muito têm.
O impacto de não resolvermos esse desequilíbrio se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, em manifestações de rua, com o Estado aterrorizando, reprimindo e condenando parte da população (normalmente mais pobre) em benefício ou com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).
Na disputa entre oprimidos e opressores, a Justiça não pode tomar partido destes últimos, mas tem feito isso sistematicamente, para aplauso daqueles que encaram que o Judiciário os pertence. Mais do que cega, ela precisa ser justa, ao contrário do que querem alguns mercadores de sentenças que vagam pelas cortes de todo o país e alguns bem-nascidos que acham que as instituições servem para defendê-los das castas indesejáveis.