Boicote de Tarcísio às câmeras em fardas foi furado pelo celular do cidadão
O mundo tomou conhecimento que policiais jogaram um homem da ponte, executaram um outro com 11 tiros nas costas, mataram um estudante de medicina desarmado, entre tantos outros casos, por conta de imagens captadas pelo celular de cidadãos ou por câmeras de estabelecimentos comerciais.
Sim, a onipresença das câmeras, que nos coloca diariamente em um "Big Brother" da vida real, compensou o retrocesso do governo Tarcísio de Freitas à política de uso desse equipamento nas fardas, que havia sido implementada com sucesso na gestão anterior.
Antes, as câmeras em fardas gravavam tudo, com exceção da hora das refeições e idas ao banheiro, por exemplo. Agora, precisam ser acionadas para momentos de ação pelos próprios policiais ou pelo comando, o que reduz consideravelmente a sua eficácia. Isso quando todas as imagens são entregues pelo comando policial ao Ministério Público, o que não aconteceu no caso de operações violentas, como a Escudo.
É irônico que a crônica policial filmada comece e termine com agentes do 24º Batalhão de Polícia Militar/Metropolitano em Diadema, na Grande São Paulo.
Como apontou o colunista Josmar Jozino, do UOL, o mesmo batalhão que, neste 2 de dezembro, arremessou um homem da ponte, esteve envolvido no caso da Favela Naval, quando PMs dessa unidade torturaram ocupantes de um carro e mataram um deles sem motivo algum, em março de 1997.
Um cinegrafista amador gravou essa e outras imagens, escondido em um imóvel. Ele estava de campana exatamente para registrar os constantes abusos de policiais que agrediam e extorquiam pessoas do bairro. As imagens foram divulgadas pelo Jornal Nacional, da TV Globo, e levaram à condenação dos envolvidos.
Foi o primeiro grande caso em que câmeras de cidadãos foram usadas para expor as sacanagens de agentes de segurança. De lá para cá, tanto os equipamentos quanto a política pública evoluíram, até que o governo João Doria começou o processo de instalar câmeras corporais.
O fato de que as imagens do homem arremessado da ponte por policiais, em um novo caso de tortura envolvendo o 24º BPM/M, tenham sido gravadas por um cidadão e não pelas fardas, mostra que regredimos 27 anos. Não é que a história não tenha mudado neste tempo, ela mudou sim, mas regrediu ao final.
Celulares vigiam a violência policial
Sem a proteção das câmeras de policiais, a população recorre às câmeras de seus próprios celulares para garantir o registro de situações de abuso. Por exemplo, em maio de 2023, viralizou nas redes sociais o vídeo de Vilma de Oliveira, de 70 anos, levando um soco no rosto de um policial militar ao tentar proteger seu filho, já rendido, que estava sendo asfixiado por outro PM, na zona rural de Igaratá (SP). Após ser esmurrada e cair, ela se levantou e continuou tentando ajudar o rapaz.
Gravar e postar intervenções policiais violentas, identificando placas de viaturas e os rostos dos envolvidos, se tornou frequente. Porque a violência policial é alimentada com a certeza do "tudo pode", passada por governos que não controlam ou pouco comandam suas polícias e por outros governantes que incentivam o excludente de ilicitude.
Um exemplo global foi a tortura e morte de George Floyd por um policial branco, em Minneapolis - o que desencadeou a mais intensa e importante série de protestos raciais, em décadas, nos Estados Unidos e no mundo. O sufocamento do homem negro foi gravado e, em pouco tempo, estava empurrando pessoas para as ruas. Em meio aos protestos, outro vídeo mostrou quando policiais empurram um homem de 75 anos que caiu, bateu com a cabeça e teve um dano cerebral. Antes das imagens, tentou-se vender a versão de que ele tropeçou.
Em 1º de dezembro de 2019, uma ação violenta da PM levou à morte de nove jovens durante um baile funk na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Os vídeos gravados pelos frequentadores da festa e por moradores da favela de dentro de suas casas foram fundamentais para desmentir a narrativa das forças de segurança.
É fato que não se pode confundir a parte honesta da corporação com sua banda podre. Mas também é um erro achar que a violência é uma "ação isolada", como apontou o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite após os mais recentes casos em São Paulo. Pois isso não é desvio, mas parte de uma política pública que permitiu e incentivou a violência como método.
Policiais não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda tornar-se um psicopata. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem, na falta da formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores.
As forças de segurança em grandes metrópoles são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Com governadores e secretários de Segurança Pública apoiando a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade ajuda a agir sem pensar nas consequências. Isso vale para São Paulo, mas também para o Rio de Janeiro e a Bahia.
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Quero receberQuando a morte atinge alguém do centro mais rico, como foi o caso do estudante de Medicina Marco Aurélio Acosta, de 22 anos, com um tiro à queima-roupa, em um hotel na Vila Mariana, no dia 20 de novembro, o governo é chamado a se justificar. Esse foi mais uma caso em que policiais tentaram culpar a vítima, mas as câmeras do estabelecimento desmentiram. Foi o caso dele, com pais médicos e professores da USP, que fez com o que esse tipo de abuso se tornasse assunto entre os mais abastados, pois a violência policial fugiu da periferia. Com provas em vídeo.
Com as mudanças adotadas pelo governo paulista à política das câmeras nas fardas, o barateamento dos celulares se tornou a mais importante medida para conter a violência policial. É uma pena, contudo, que a responsabilidade tenha que ficar nas mãos dos cidadãos e não daquelas pessoas que são pagas para isso.