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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jesus pistoleiro e o Evangelho segundo Quentin Tarantino

arma e Bíblia - Reprodução
arma e Bíblia Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/06/2022 04h00

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O vídeo em que o presidente Bolsonaro diz que Jesus só não comprou uma pistola porque não vendia na época é mais um capítulo da briga pelo eleitorado evangélico. Parece absurdo, mas é parte de uma estratégia muito bem sucedida até agora.

Lula também quer brigar pelo eleitor evangélico. É um segmento gigantesco, que cresce de forma consistente e ainda não é entendido pela elite intelectual nem pelos analistas políticos.

O questionamento mais comum sobre o vídeo do Jesus pistoleiro é como alguém pode falar esse absurdo de quem viveu pregando amor e perdão. Faz sentido, só que religiosidade não é lógica, é fé.

Políticos carismáticos, como Lula e Bolsonaro, sabem que não precisam se comportar como cristãos exemplares para ganhar corações e mentes dos cristãos.

"Deus não escolhe os preparados, prepara os escolhidos", diz a lógica religiosa. Quem for o "ungido" levantado por Deus receberá os dons necessários para desempenhar a missão como autoridade dos homens.

É um desafio à lógica compreender como o fetiche armamentista entrou na pauta evangélica. Um bom começo é compreender o desenvolvimento do Evangelho segundo Quentin Tarantino, esse do Jesus pistoleiro.

Não é preciso mentir nem distorcer nada para chegar aí, basta seguir a técnica ancestral do uso da Bíblia à la carte, escolhendo alguns versículos e desprezando outros.

A liderança cristã diz ao presidente Bolsonaro que Jesus mandou seus discípulos comprarem espadas e, se preciso, vender até as roupas para isso. É verdade, está no Evangelho.

Falta só o contexto, que acaba fraudado por omissão. Essa passagem é logo após a última ceia, em que Jesus diz que será traído e ficará longe por um tempo. Quando Ele está para ser preso, um dos discípulos usa a espada contra o servo do sumo sacerdote, que efetuaria a prisão. É repreendido por Jesus.

"Quem vive pela espada morrerá por ela", diz a passagem bíblica. A espada serve quando não há Jesus para proteger. Quem anda com Jesus é protegido por Ele, não por armas.

O Evangelho segundo Quentin Tarantino é, no entanto, muito mais atraente que as versões cristãs da Bíblia. Ao sortear versículos para justificar impulsos humanos violentos, é possível libertar os seguidores da necessidade de disciplina e domínio próprio. Ter orgulho dos próprios defeitos é muito mais gostoso do que tentar andar na linha.

O discurso do Jesus pistoleiro tem como combustível o preconceito da elite intelectual e dos analistas políticos com o público cristão. Todos são colocados no mesmo balde de Silas Malafaia, como se fossem uma massa amorfa, ignorante e sem individualidade.

É o erro de criar uma identidade social e um grupo coeso onde não havia, como fez Hillary Clinton ao chamar os trumpistas de "basket of deplorables".

Ultimamente, a intelectualidade brasileira tem aceitado lideranças evangélicas validadas por Caetano Veloso ou que repitam discursos políticos progressistas. Nessa lógica, a religião poderia ser submetida à política, mas ocorre o oposto.

Para os religiosos, nada está acima da fé e da ligação com Deus. A religião providencia a explicação perfeita para aceitar políticos que se dizem cristãos apesar de não agir como um.

"Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que nada são, para reduzir a nada as que são,
para que ninguém se vanglorie diante dele", diz a primeira carta aos Coríntios.

Essa passagem virou um dos memes políticos mais deliciosos quando dita por Silas Malafaia com a mão imposta sobre a cabeça de Jair Bolsonaro ajoelhado.

Para o cristão, não há autoridade na Terra que não tenha sido erguida por Deus. Comportamentos absurdos e aberrantes de autoridades são para nos ensinar humildade. Não somos nós que estamos no controle, é Deus, que escreve certo por linhas tortas.

Ao ceder à tentação de ridicularizar e rotular evangélicos, se perde a compreensão sobre um raciocínio religioso muito útil na política.

Ganhar um público que não ataca seus líderes e acredita em redenção depende mais da militância do que do comportamento dos políticos. Por enquanto, está levando quem menos debocha dos evangélicos.