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Maria Carolina Trevisan

REPORTAGEM

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Como funciona lógica bolsonarista de colocar negros a favor de seu discurso

O presidente Jair Bolsonaro faz live no Facebook acompanhado de Hélio Lopes (à dir. na foto) - Reprodução/Facebook
O presidente Jair Bolsonaro faz live no Facebook acompanhado de Hélio Lopes (à dir. na foto) Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

16/07/2021 04h00Atualizada em 16/07/2021 10h17

O segmento demográfico que mais rejeita o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é formado por mulheres negras. A pesquisa do Instituto Ideia, publicada nesta sexta (16), confirma esse quadro e mostra que a avaliação negativa do presidente alcançou 51% no total, mas chegou a 59% entre as mulheres negras, que consideram seu governo "ruim/péssimo".

É reflexo de uma gestão que nunca priorizou políticas públicas que pudessem se refletir na vida de negras e negros (menos ainda das mulheres). A não ser no breve período em que vigorou o auxílio emergencial de R$ 600, entre abril e agosto de 2020, transferência de renda capaz de tirar da extrema pobreza mais de 4,2 milhões de mulheres negras.

Mas o auxílio emergencial nesse valor não foi obra ou desejo do governo Bolsonaro. Foi uma articulação da Câmara. Quando acabou, não havia plano. Não há, ainda. Ninguém sabe o que vai acontecer com o Bolsa Família, nem Paulo Guedes, ministro da Economia.

Além disso, o governo e o próprio Bolsonaro têm sido racistas. Houve o episódio ofensivo aos quilombolas em palestra na Hebraica, o presidente falou do cabelo de apoiadores negros mais de uma vez e, no ano passado, Bolsonaro minimizou o racismo sofrido por dois jovens negros ao utilizar uma saída típica de quem nega a existência do ódio racial para não ter que lidar com ele: "A miscigenação é uma marca do Brasil. Somos todos iguais!".

A verdade é que não somos todos iguais. Os negros estão muito mais sujeitos à violência letal do que os não negros, por exemplo. É o que mostrou —mais uma vez— o Anuário da Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresentado nesta quinta: 76,2% das vítimas de mortes violentas intencionais são negras e 78,9% daqueles que morreram pela violência policial são negros.

É a realidade do país. Cabe ao governo mitigar esse tipo de disparidade racial. Mas o que faz o governo Bolsonaro? Fomenta o ódio racial.

Nesta quinta (15), o secretário de Cultura de Bolsonaro, Mario Frias, achou que estava tudo bem ao publicar um tuíte em que dizia ao historiador negro Jones Manoel que ele "precisa de um bom banho". A publicação foi retirada do ar pelo Twitter, que considerou a manifestação uma propagação do ódio. Correto. Jones pode acionar a Justiça para que Frias seja processado por crime de racismo ou injúria racial.

Conservadorismo e bolsonarismo negro

Minutos depois de perceber a repercussão negativa que teve sua postagem racista, Mario Frias publicou outro tuíte em que falava da amizade com o secretário nacional dos Esportes, Marcello Magalhães, um amigo de infância de Flávio Bolsonaro e seu padrinho de casamento. Ele é um homem negro.

Com isso, Frias quis minorar a gravidade de seu ato racista como quem diz: "Não sou racista, tenho até um amigo negro".

Existe o conservadorismo negro e existe o bolsonarismo negro. Os conservadores negros rejeitam a crítica ao racismo por entenderem que se trata de "vitimismo".

"É uma estratégia que aposta na individualidade e não na construção de redes e na mobilização de grupos em torno de uma agenda que enfrente as práticas racistas, seja de maneira mais ampla ou mais institucional", explica Flávio Francisco, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC.

"Não é que essas pessoas não tenham noção das dinâmicas raciais. Elas preferem outra opção: a individualidade. Atribuem o discurso do vitimismo àqueles que fazem uma crítica pública das práticas racistas e se engajam em uma mobilização política contra o racismo. Aí tem um elemento fundamental que é o da 'respeitabilidade negra', que aparece muito nos discursos dos evangélicos negros e dos policiais negros", explica ele.

É como se, ao entrar para uma instituição como a Polícia Militar, que representa a ordem, ou para uma religião tão poderosa, com regras rígidas que funcionam para reorganizar a vida, como a igreja evangélica, fosse o suficiente para que uma pessoa negra não tenha que lidar com as representações negativas de sua identidade presentes na sociedade brasileira. As desigualdades raciais seriam superadas apenas pelo esforço de cada um.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, de fala reacionária e que chegou a xingar o próprio Zumbi dos Palmares, tem um papel fundamental na organização desse discurso. "Ele vai dizer que pode haver práticas racistas no Brasil, mas o país não é uma sociedade racista, como se não existisse um racismo sistemático, apenas problemas circunstanciais", diz o professor.

Nesse sentido, Camargo ocupa o espaço do homem negro que trabalha para remover todo o discurso antirracista que foi construído institucionalmente pelos governos anteriores. Seu foco principal é o público branco. Mas ele não nega a raça.

Já o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ) seria "a cara do bolsonarismo negro", segundo o professor. Conhecido também como Hélio Negão ou Hélio Bolsonaro, está sempre ao lado do presidente para garantir que ele não seja visto como racista. Tem um papel de "subalternidade consentida" e não se expressa em relação à agenda racial, como explica Flávio Francisco. Aparecer sempre ao lado de um homem negro seria uma maneira de aproximar a população negra do presidente Bolsonaro.

Na semana passada, Bolsonaro se referiu ao cabelo de um jovem apoiador negro de maneira racista. Disse que seria um "criador de baratas". Ele tinha o cabelo "black power", símbolo da resistência negra. Mas fez questão de dizer que não estava ofendido. "Eu não sou um negro vitimista, tudo o que eu conquistei na vida hoje e que estou conquistando é por causa de trabalho e meritocracia. Nada me difere de uma pessoa branca, como eles querem separar", afirmou.

Naquela noite, o jovem negro bolsonarista Maicon Sullivan foi convidado pelo presidente a participar da live semanal no Facebook, com o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes. Na ocasião, Bolsonaro chamou os movimentos sociais de "farsas" e disse que seriam responsáveis por dividir a sociedade. Renomeou seu ato racista como "piada".

*A jornalista Maria Carolina Trevisan é membro do Núcleo Afro do Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento