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Presença Histórica

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Ventre Livre: como o Brasil minou o direito de ser mãe de mulheres negras

Mulher negra com o filho, em Salvador, em 1884. - Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Mulher negra com o filho, em Salvador, em 1884. Imagem: Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

Colunista do UOL

28/09/2022 04h00

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Amância, depois de muito esforço, conseguiu alforria em São Paulo. A batalha seguinte era libertar a filha Maria, de 13 anos. Inconformada, recorreu ao Juízo de Órfãos de São Paulo para impedir que a senhora da garota a levasse para o Rio Grande do Sul afastando-a de vez de sua menina. Amância não suportaria a separação. A pequena, "débil e doentia", também não. Era 1883. O caso, entre tantos outros, foi apresentado pela historiadora Marília Ariza. Há histórias difíceis de contar. Imagine então o quanto foi difícil vivê-las. São muitas e atravessadas por indescritíveis violências. De toda sorte. Corpos castigados, violados, destruídos. Famílias separadas. Vidas roubadas, almas partidas.

Uma parte importante da historiografia que tratou da escravidão dedicou-se a denunciar o horror que atravessou gerações de homens, mulheres e crianças nesse imenso país. Sim. Não há lugar desse Brasil que não tenha utilizado, em maior ou menor grau, o trabalho de escravizados. Dar visibilidade a essas dimensões eram argumentos importantes para o debate político, protagonizado pelos movimentos sociais de negritude, que se ampliava na sociedade brasileira entre 1970/1980, pautando lutas antirracistas em diferentes frentes. Destacar a violência indecorosa da escravidão sobre vidas negras, em última análise, ajudava a subir o tom nas demandas por direitos e políticas de reparação. Era essencial falar sobre isso. Mas não era tudo.

Porém, a chave da violência, de modo exclusivo, não dava conta de questões complexas e que diziam respeito às inúmeras trajetórias e ações radicais de protagonismo negro em todos os campos da vida. Foi, exatamente, isso que a pesquisa histórica preocupada destacar a agência de gente negra, a despeito de condições extremas, demonstrou. Isso não interessava apenas a historiadores, mas a todo um campo de pensamento muito mais vasto. Sem minimizar o peso da opressão, os estudos sobre a escravidão avançaram sobre dimensões variadas da experiência de homens e mulheres: e tentaram lançar o olhar para outras possibilidades de ser e estar no mundo sem reduzir histórias de vidas negras à condição de escravizados/as, vítimas sistemáticas da condição de subalternidade.

De todos os cantos, emergiram vozes, rostos e nomes de gente que se confrontou, esquivou, conformou, reinventou e constituiu caminhos novos para si e para os seus. Gente que incendiou canaviais, que aprendeu a ler para ensinar os camaradas. Que abriu escolas, criou jornais, escreveu livros, trabalhou ao ganho para formar pecúlio, comprou alforria coletivamente. Gente que nunca viveu na escravidão, mas a conheceu de perto, que se juntou em coletivos (clubes, sindicatos, irmandades religiosas, quilombos, terreiros de candomblé) e constituiu identidades renovadas que sustentaram lutas por direitos. A vida fazia mais sentido se aquilombando.

Ninguém esqueceu, porém, a dimensão das violências repetidas, atualizadas, cotidianas. Elas estavam lá marcando as fronteiras de uma sociedade hierárquica assentada na exclusão. Gerações aprenderam que só a luta coletiva funcionava, mas também ensinaram a quem veio depois que era preciso insistir e reinventar estratégias. Nem sempre a história "terminava bem". Era essencial manter a atenção. A Lei do Ventre Livre é um momento desses que ajuda a pensar sobre tais dimensões. Em 2022, ela completou 151 anos. O que há de tão relevante nela?

Podemos começar com o fato de que a lei marca uma inflexão relevante porque, a partir dela, a condição escrava não segue mais o ventre. Vários autores apontam o quanto isso foi importante do ponto de vista legal. Crianças de mulheres escravizadas nascidas a partir de 28/09/1871 não seriam mais escravizadas como suas mães. Bacana, né? Quase isso. Devagar com o andor que o império é escravista. E renitente.

A geração do Ventre Livre tinha sua condição registrada no batismo, e são inúmeros os registros dessa condição nos livros da Igreja. Ocorre que as coisas não eram simples assim. Quando essa criança completava 8 anos, os senhores tinham a prerrogativa legal de requerer uma indenização e entregá-la a instituições de acolhimento ou, então, encarregar-se de seu sustento (e educação) até os 21 anos, em troca de seu trabalho!

Você não leu errado. Crianças nascidas de "Ventre Livre" podiam ser separadas de suas mães aos 8 anos ou trabalhar forçadamente em troca de casa e comida até os 21 anos, caso permanecessem ao lado delas. Escolha difícil, diriam alguns. Também era nada incomum que essas crianças "ventre livre" em prestação de serviço acabassem sendo arroladas, lá na frente, nos inventários senhoriais como propriedades, sendo vendidas ou entregues a familiares como "herança". Há inúmeros processos assim como indica a pesquisa de Keila Grinberg sobre ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.

O trabalho de Lucimar Felisberto dos Santos lança uma luz poderosa sobre tais experiências. Se alguém, desavisadamente, ainda não notou, a lei retirava da mãe o direito à maternagem. Isso não é pouco e nem pode ser minimizado. Martha Abreu é uma das autoras que trata dessa dimensão lembrando que a afetividade dessas mães não foi considerada e nem o direito de tutelar seus filhos. Mas o que podiam fazer? Uma alternativa era a fuga com seus filhos. O exemplo de Maria Rufina é um entre tantos. Fugiu ela da fazenda de seu senhor no Rio de Janeiro levando seu menino Manoel em 1885. Foi essa a escolha de Paulina, Januária e Francisca em vários outros lugares.

Lucimar Santos revela que muitas mães recorreram à fuga, como indicaram os registros da Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Elas fugiam para tentar resguardar os filhos. Uma chance de vê-los crescer em liberdade e longe da sujeição que experimentavam junto a seus senhorios. Era uma alternativa arriscadíssima. Funcionava? Nem sempre. Mas era uma chance.

A autora chama atenção para o fato de que a lei do Ventre Livre também regulamentou o Fundo de Emancipação de Escravos, que pretendia reunir recursos para custear a liberdade de pessoas escravizadas nas províncias do Império. Em texto anterior, já tratamos dos usos "pouco ortodoxos" desse fundo pelas elites escravistas nas províncias. Lucimar Felisberto registra que a lei abriu espaço significativo de disputa dessas mulheres, seus proprietários e o governo imperial. Afinal, além de interferir diretamente na relação senhor-escravo, é preciso sublinhar que a "opção" pelo uso do trabalho das "crianças do Ventre Livre" até os 21 anos foi feita pela maioria dos proprietários. Além disso, nessas condições, eles também tinham direito ao aluguel do trabalho dessas crianças. Enfim, um arranjo inteiramente lucrativo do ponto de vista senhorial. Para as crianças, uma existência inteira marcada pela tensão de uma liberdade precária e frequentemente ameaçada.

Há quem leia as extraordinárias histórias de construção de autonomia que estão emergindo sistematicamente na historiografia e, por alguma operação intelectual que não compreendo, relativizam a força da escravidão e da hierarquia institucionalizada. Tenho ouvido comentários assustadores quando sublinhamos histórias de liberdade e um, que me causa espécie, é o que a escravidão brasileira foi branda e, no limite, "permitiu que gente preta que luta, vença". Essa fala reforça um estereótipo ancorado na meritocracia que dá o tom de muitas trajetórias negras de "sucesso" no presente. Ela diz, nas entrelinhas, que a escravidão foi dura só para aqueles que não lutavam. Dito de outro modo: só vence quem não se "vitimiza".

As experiências dessas mães do Ventre Livre, dolorosas ao ponto de ser difícil enunciá-las, abrem janelas para falar de coisas bem diferentes: de um amor que corre riscos, da constituição de subjetividades, da formulação de práticas políticas ancoradas em redes de solidariedade e de afetos para confrontar dor e racismo. São formas de enfrentamento renovadas, ainda que nem sempre bem-sucedidas. Acessando a justiça ou fugindo, elas nos dizem algo relevante: só a luta coletiva transforma a vida. Se o país não assegurava a existência digna de todos, essas mulheres se empenharam em garantir ao menos uma possibilidade. Foi isso também que nos fortaleceu e fez chegar até aqui.