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Não seremos interrompidos! Como Seu Jorge põe em xeque o projeto de nação

Seu Jorge em vídeo gravado para responder às ofensas racistas durante show em clube de Porto Alegre (RS) - Reprodução/Youtube
Seu Jorge em vídeo gravado para responder às ofensas racistas durante show em clube de Porto Alegre (RS) Imagem: Reprodução/Youtube

Colunista do UOL

26/10/2022 04h00

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Às vésperas de uma eleição histórica, proponho a vocês que possamos refletir sobre o que a história de um jovem marinheiro negro que atuou nas Forças Armadas brasileiras entre 1855 e 1865 de nome Marcílio Dias tem a nos ensinar sobre um projeto de nação viável e inclusivo?

Polocena Maria Dias acompanhou de perto as agruras da escravidão, não por ter passado pelo cativeiro, mas porque seus pais sim. Desde pequena, no povoado de Povo Novo, interior da importante cidade litorânea de Rio Grande, sabia que ocupava uma posição inconstante na sociedade escravista. Mulher negra livre, filha de pais africanos, escravizados no Brasil, mas que garantiram a sua liberdade e da filha nas primeiras décadas do século 19. Sua posição era incerta, pois a cor da pele fazia com que a sociedade a identificasse sempre com o cativeiro. Era necessário fazer a sua liberdade viável. A sua e a de seus descendentes. E, assim o fez, com suas três filhas e o filho caçula. Este último, nascido em 1838, receberia o nome de Marcílio.

A mãe, também conhecida como Pulcena, era lavadeira e ficou viúva logo após o nascimento da terceira filha. Marcílio nasceu de um relacionamento com um marinheiro português. Mãe e filho tiveram vidas difíceis, tendo inclusive que lidar com a injustiça corriqueira que recaía sobre corpos negros que ousavam ocupar outros lugares que não o da escravidão.

Pulcena foi presa em 1855 permanecendo no cárcere até o ano seguinte, quando foi absolvida da acusação de colocar moeda falsa em circulação, mas mesmo presa não descuidou do filho e solicitou que um amigo da família o encaminhasse à Escola de Grumetes, na capital imperial, logo após o filho ser preso por jogar capoeira. Como nos apresenta o historiador Álvaro Nascimento, a escola era voltada para a formação de aprendizes marinheiros.

O jovem Marcílio fez carreira ao longo de dez anos junto à Armada Imperial. Faleceu em 12 de junho de 1865 na Batalha do Riachuelo, célebre conquista ao início da Guerra do Paraguai, exatos 20 dias depois da morte de sua mãe. Teve uma carreira marcada por interdições que são recorrentes às pessoas negras, ainda que hoje seja reconhecido na história da instituição e dê nome ao principal centro de saúde da Marinha do Brasil, na mesma cidade em que sentou praça, Rio de Janeiro.

Em 1949, a cidade de Porto Alegre se depara de forma intensa com a história do marinheiro negro Marcílio Dias ao ver seu nome atribuído ao Clube Náutico criado para que as pessoas negras, então denominadas "de cor", pudessem praticar esportes como remo, natação e outros, conforme destaca seu estatuto. A prática era proibida para as então denominadas pessoas "de cor" nos outros clubes da cidade, aos moldes do Grêmio Náutico União criado em 1906, conhecido como "Clube dos Guris", dando sequência à tradição de alemães e seus descendentes na prática do remo.

No entanto, o Clube Náutico Marcílio Dias inova ao proporcionar ao quadro de sócios bem mais que a prática de esportes náuticos. Oferece acesso à educação, cultura e união da comunidade negra gaúcha que vinha de outras cidades para atividades do Marcílio. Não foi à toa que a sede do Clube serviu, já em 1971, de espaço para as reuniões do Grupo Palmares que organizou o primeiro ato evocativo do 20 de novembro como data da Consciência Negra. Fora esse também o espaço utilizado pelo Movimento Negro Unificado do estado.

O clube infelizmente encerrou suas atividades nos anos 80, mas seus frequentadores permaneceram no ativismo contra o racismo tão comum pelas terras do sul. Ainda que comum nas terras do sul, essa é uma marca da nossa nação que, como temos visto, extrapola em muito o estado sulino. E, chega aos nossos dias com agressões racistas também num Clube Náutico, o mesmo "Clube dos Guris". Se no passado não permitia a entrada de pessoas negras por meio de vários subterfúgios implícitos no seu estatuto, esse clube foi palco no último dia 14 dos xingamentos racistas ao cantor Seu Jorge, um homem negro e consciente da coletividade da qual faz parte.

No entanto, assim como os demais personagens que apresentei anteriormente, Seu Jorge encontrou formas de demonstrar como existir nesse país imerso no racismo e percebeu que as intolerâncias de toda ordem exigem posicionamento. Não se furtou de explicitar que racismo é injustificável, ainda que um projeto de nação em curso o viabilize. A convocação de Seu Jorge não é isolada e informa muito sobre a onda de ódio que nos alcança como nação. A mesma onda que estava presente naquele 08 de março de 2018 quando Marielle Franco, a jovem vereadora negra carioca, disparou: "não serei interrompida" - Trouxe consigo a ancestralidade negra da viabilidade das nossas existências.

Faço aqui um convite a quem nos lê. Reflita sobre a forma como reiteradamente os grupos populares - desprovidos de poder - têm oferecido exemplos de como a nação brasileira pode ser viável, desde que seja capaz de contemplar o seu povo de forma inclusiva. Um dos exemplos nos permitiu realizar um diálogo dos tempos, com aquilo que denominamos passados presentes e remonta ao sul do Brasil, tem início no século 19 com uma mulher negra mãe que acreditou que seu filho podia se incluir no projeto de nação viável, e não ficar apenas nas margens; um jovem homem negro que dedicou sua vida à independência do Brasil e hoje tem seu nome na história militar; um grupo de jovens negros que em 1949 homenageou aquele herói nacional ao idealizar um clube social em Porto Alegre em que "pessoas de côr" pudessem entrar e se sentir cidadãs; e os tanto diálogos possíveis com os casos de racismo mais recentes na mesma capital do estado sulino, sobressaindo o episódio em que o cantor Seu Jorge se viu agredido.

A depender dos contextos, a população negra reagiu às interdições do racismo de uma forma possível, mas nunca abriu mão de se incluir em um projeto de nação. Demonstrou assim que a nação poderia ser inclusiva e que ganharia em muito com isso. Assim também avançamos no combate às outras discriminações e intolerâncias, porque se colocar ao lado do combate ao racismo permite que combatamos a homofobia, violência doméstica, feminicídio e intolerância religiosa.

Hoje, às vésperas de uma eleição histórica em que projetos completamente díspares se enfrentam, é tempo de refletirmos e evocarmos os ensinamentos de nossos ancestrais: Não fomos e não seremos interrompidos enquanto nação. Mas para isso precisamos nos comprometer com a mudança das estruturas sociais. Esse compromisso precisa ser da sociedade como um todo. Como ao longo da história experenciamos projetos (in)viáveis de Brasil, então, questiono: vamos nos colocar enquanto um mesmo povo no combate a toda e qualquer forma de discriminação ou vamos permitir que o retrocesso se aprofunde?