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Disputa pelo Círio de Nazaré expulsou negros que ajudaram a erguer a festa

Foto do botânico suíço Jacques Huber e obtida pelo pesquisador Nelson Sanjad mostra as comemorações do Círio de Nazaré no século 19, com ampla participação de pessoas negras - Jacques Huber/SESC Boulevard
Foto do botânico suíço Jacques Huber e obtida pelo pesquisador Nelson Sanjad mostra as comemorações do Círio de Nazaré no século 19, com ampla participação de pessoas negras Imagem: Jacques Huber/SESC Boulevard

Colunista do UOL

12/10/2022 04h00

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Era gente que não acabava mais. Como sempre. Depois de 2 anos de pandemia, Belém foi às ruas para as celebrações oficiais do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, considerado a mais importante festa católica brasileira e uma das maiores procissões religiosas do mundo. Domingo (9/10), os devotos acompanharam a passagem da Santa desde a Catedral da Sé até a Basílica de Nazaré. O que pouca gente sabe são as histórias escondidas nesse extraordinário cortejo.

A estimativa era de 2,5 milhões de pessoas nas ruas da capital paraense. Mas é muito mais que isso. Para quem não conhece a diversidade das festividades do Círio de Nazaré, são dezenas de atividades religiosas que marcam intenso calendário por todo mês de outubro e só termina no Recírio, outro momento importante de concentração nas ruas, colocando fim ao ciclo das romarias oficiais.

A festa, que acontece no Pará desde finais do século 18, é reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro desde 2004. Em 2013, foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Há outro potente conjunto de festas "profanas" dedicadas a festejar a Santa e que exercem papel fundamental na compreensão da complexidade da festa paraense: Festa da Chiquita, Arrastão do Círio, Auto do Círio, só para citar algumas.

Apesar de ser profusamente estudado, explorado e documentado, o Círio de Nazaré permanece sendo um momento muito significativo para iluminar a vida do Pará em diferentes dimensões. Ainda há inúmeras histórias pouco conhecidas, sobretudo, na reiteração das disputas em torno do controle da festa e da Santa. Em 2021, um dos membros da Guarda da Santa, grupo de voluntários responsável pelo acesso à imagem e que atua nas cerimônias públicas durante o Círio, tomou a iniciativa de levar a imagem de Nazaré a uma casa de candomblé e acabou sendo expulso daquela organização.

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Círio de Nazaré levou 2,5 milhões às ruas em Belém
Imagem: Divulgação/Prefeitura de Belém

Para entender o episódio, é preciso lembrar que a visita da imagem da Santa a casas e a instituições faz parte do circuito das tradições dos festejos do Círio. O guarda Jairo Tapajós levou a imagem peregrina à casa de uma sacerdotisa de candomblé Angola, Mameto Nangetu, para receber as homenagens da praxe e acabou sendo punido. A razão mais evidente foi a intolerância religiosa, como registraram a Mameto, Jairo e Zélia Amador de Deus, professora titular da Universidade Federal do Pará e ativista do Movimento Negro.

A expulsão de Jairo Tapajós não foi justificada pela Guarda de Nazaré. Contudo, há nessa história questões relevantes e que remontam à trajetória histórica da festa. Além de compreender a intolerância e o racismo aqui presentes, vislumbrar a memória de um passado recente que foi silenciado nos permite entender um pouco mais. Vamos a ela.

As histórias escondidas nas fotos do botânico suíço

Há alguns anos, o pesquisador do MPEG (Museu Paraense Emílio Goeldi), Nelson Sanjad, localizou, na Suíça, um acervo raro de fotografias feitas por Jaques Huber em Belém no início do século 20. Huber, botânico suíço que trabalhou no Museu Goeldi em Belém entre 1895 e 1914, produziu preciosas imagens sobre a flora amazônica, mas também registrou a festa do Círio de forma pioneira. Direcionou seu olhar para a população que acompanhava a celebração com uma máquina nas mãos circulando em meio à multidão. O resultado é impressionante. As 10 fotografias conservadas no Arquivo Cantonal da Basiléia, na Suíça, ajudam a avistar histórias pouco conhecidas da famosa festa paraense.

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Foto do botânico suíço Jacques Huber e obtida pelo pesquisador Nelson Sanjad mostra as comemorações do Círio de Nazaré no século 19, com ampla participação de pessoas negras
Imagem: Jacques Huber/Sesc Boulevard

Em 2018, elas vieram a público, pela primeira vez, na exposição "Círio 1900 - Fotografias de Jaques Huber", realizada no Centro Cultural do Sesc Boulevard em Belém, com a curadoria de Nelson Sanjad e Paula Sampaio. Agora, voltam à cena em outra exposição no (IMS) Instituto Moreira Sales, em São Paulo, chamada "Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil - 1890-1930".

O que há de tão relevante nesse material? Especialistas reconhecem que há poucos registros fotográficos do Círio no século 19 e essa é a primeira justificativa da importância das fotos de Huber. Mas, além disso, as imagens ajudam a materializar a presença de gente negra na festa de Nazaré. Como destacou Sanjad, isso merece investigação considerando que, naquele momento, irmandades negras com a presença de sacerdotes e sacerdotisas de religiões de matrizes africanas também faziam parte da organização do Círio. O historiador lembra que foi só no início do século 20 que a Igreja Católica romanizou a festa da Santa e afastou negros e negras dessas atividades. As fotografias de Huber, portanto, registram um momento anterior a esse processo de apagamento.

Tratando da festa no século 19, o historiador Márcio Couto Henrique chamou atenção para seu aspecto multidimensional. Além de registrar a diversidade das "atrações" disponíveis, também revela os diferentes modos de reinvenção popular de "festas profanas e de alegria ruidosa", quando indígenas, negros e africanos transformaram esses espaços públicos em palcos de batalhas simbólicas e exercitaram seu protagonismo. Uma delas são as denúncias das fugas de escravizados para participar das movimentações do Círio. Foi o caso de Paulino e Manoel que se meteram em uma briga em pleno arraial e foram presos. Perderam a festa de 1876.

Como apontaram o historiador Fernando Arthur Neves e a jornalista Regina Alves, desde o século 19, o Círio tem sido objeto de acirradas disputas entre a Igreja e as iniciativas da sociedade para dar o tom e os contornos da festa. O apagamento da presença negra nesse processo pode ser uma das muitas faces pouco exploradas desses embates e que ainda tem forte repercussão em nosso tempo presente. A história de Jairo Tapajós parece indicar isso. De um lado, a disputa pelo controle hegemônico da festa tem um espaço importante para suas manifestações.

De outro, essa visita da Santa a uma casa de candomblé dialoga com uma memória profunda de protagonismo negro muito relevante na celebração da Senhora de Nazaré e que guarda inúmeros sentidos. Uma memória que permanece resistindo e se refazendo. Afinal, no meio dessa multidão, a fé inabalável no "Lírio Mimoso" é vivida a partir de tradições e experiências múltiplas, assentadas em histórias que sobreviveram entre silêncios, intolerâncias e esquecimentos.