Não fosse a resistência, teríamos sido exterminados
A violência racial no Brasil é um dado de tamanha gravidade que demanda a ampliação dos espaços para que possa ser combatida de fato. Encerrando a série dedicada ao tema, a coluna Presença Histórica opta pelo registro do diálogo que Ana Flávia Magalhães e Patricia Alves-Melo tiveram com Douglas Belchior, historiador e ativista, que esteve diretamente envolvido na mobilização do Dia Nacional de Lutas dos Movimentos Negros pelo Fim da Violência Racista da Polícia, no último 24 de agosto.
Nos dias que seguiram ao ato, ativistas negras e negros se reuniram com representantes dos três poderes da República. Após plenária de avaliação (28), os movimentos negros anunciaram atividades que fortalecem a agenda, conectando as imagens de Luiz Gama e Zumbi dos Palmares, numa articulação de lutas históricas por justiça e liberdade.
Presença Histórica - Diferentes casos de violência racial ganharam espaço nos noticiários no mês de agosto. Os maiores destaques vão do assassinato do Thiago Menezes Flausino à execução de Mãe Bernadete Pacífico. Por ação ou omissão, as polícias têm sido questionadas quanto à sua forma de atuação. Como você avalia essa conjuntura?
Douglas Belchior - É preciso dizer que se trata de violências de Estado, no plural. As polícias são uma face disso. Talvez a mais explícita, mas o Estado é o promotor de diversas violências. A polícia coloca o projeto em prática. Essa forma de atuar não muda e já atravessou todo o pós-abolição. Na medida em que o Estado e as polícias se organizaram, a violência tomou novas faces, atualizou justificativas, mas é a mesma que se posiciona contra a população negra. Então, não é regra a comoção quando uma criança é assassinada ou uma senhora de 72 anos é executada com crueldade. Esses são casos que fogem à regra e que nos ajudam a tratar do tema publicamente e iluminar o dia a dia. Nele, mães choram e pequenos levantes de resistência em becos, bairros periféricos se multiplicam. Isso acontece toda semana, mas sem visibilidade. A morte causada por 12 tiros na cara da Yalorixá, que é uma alta autoridade religiosa numa comunidade de terreiro, é comparável à de um bispo da igreja católica, das grandes igrejas evangélicas, ou de um rabino importante. É exatamente essa dimensão de gravidade que não foi atribuída ao fato. Mãe Bernadete estava formalmente protegida pelo Estado. Onde está a responsabilização? Onde está a prioridade absoluta quando a gente identifica 640 crianças baleadas e mortas em poucos anos só no Rio de Janeiro?
Qual a sua avaliação sobre as mobilizações que resultaram nos atos do Dia Nacional de Lutas dos Movimentos Negros pelo Fim da Violência Racista da Polícia, de 24 de agosto?
Lamentavelmente, continua sendo mais importante para nós do que para toda a sociedade. O que aconteceu foi histórico e proporcional às manifestações que organizações tradicionais de esquerda convocam. Conseguimos colocar na rua atos em 26 das 27 capitais do país. E isso não teve a repercussão condizente ao tamanho da mobilização e, mais, diante da gravidade do tema. Isso mobilizou apenas parte do setor progressista que se manifestou sem a ênfase necessária. O fato objetivo é que os movimentos negros vêm cumprindo seu papel histórico de não se calar diante da barbárie, num exercício permanente combate à naturalização dessas mortes. Nós não naturalizamos.
Você considera que existe uma resistência ao reconhecimento do protagonismo político do Movimento Negro?
Há uma resistência deliberada. Isso é um desafio a qualquer possibilidade de democracia. Há muito tempo, o Movimento tem atuado em rede de alcance nacional em momentos muito importantes da trajetória brasileira, fazendo incidências políticas de altíssimo nível em períodos nevrálgicos da história. Na Frente Negra Brasileira, na resistência às ditaduras, na redemocratização, no debate constitucional, na luta por políticas sociais no pós-Constituição, nas grandes manifestações na Constituinte, nas marchas Zumbi dos Palmares de 1995 e 2005, na Marcha de Mulheres Negras (2015), na atuação da Coalizão Negra por Direitos. São articulações históricas em prol da democracia de fato, porque ela só é se for para todos. E ela nunca foi para a metade da população brasileira.
Muito do que você mencionou ocorreu por força da atuação em rede. Essa é uma marca?
Existe um ponto fundamental nas experiências organizativas do povo negro que é a luta pela vida e contra a violência do Estado. O encontro entre o corpo negro e a farda policial, a roupa oficial do Estado, sempre foi mortal para nós. Isso é o que alimenta, no nosso imaginário, a radical necessidade de unidade nesses momentos. Então, é importante dizer que a experiência do 24 de agosto já é histórica para nós dos movimentos negros. Ela foi uma iniciativa de todo o Movimento Negro brasileiro. Uma ação conjunta da Coalizão Negra por Direitos, da Convergência Negra e de outros vários grupos e coletivos dispersos, mas que têm uma atuação local fundamental onde essas redes mais estruturadas não alcançam. Teve ato no Oiapoque. Não foi do Oiapoque ao Chuí, porque não teve no Chuí, mas em Pelotas, Porto Alegre, sim. Foi, efetivamente, uma ação capilarizada no país a partir de um ponto de unidade radical.
A coluna Presença Histórica busca oferecer reflexões sobre como nossas experiências têm sido narradas. Como pensar a articulação dessas lutas ao longo do tempo e como isso tem sido contado? Na preparação desta conversa, falávamos sobre a leitura de um jovem ativista para quem nós, como movimento social, fracassamos porque a violência permanece e, portanto, nada mudou. A violência é sistemática, estrutural, mas ela é o suficiente para dar a medida da derrota dos movimentos negros, que têm confrontado tudo isso historicamente?
O professor Edson Cardoso diz que o segmento mais vitorioso da sociedade brasileira é a população negra. Na medida em que houve um explícito projeto para o nosso extermínio e chegamos ao século 21 como maioria populacional, nós vencemos. Somos vitoriosos diante do propósito de nos exterminar ou nos manter subalternos. A prova disso é a violência e a negação sistêmica de direitos. Isso é nítido em qualquer pesquisa séria sobre a vida social brasileira. Assim, sem considerar o que estava em jogo nesse processo histórico, talvez se justifique um olhar pessimista, porque enquanto lutamos, a polícia segue matando. Eu estava essa semana no ato no Congresso Nacional em homenagem à Mãe Bernadete com as lideranças quilombolas da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos - Conaq. Selma Dealdina, uma das maiores lideranças do movimento, falava sobre como foi o assassinato de Mãe Bernadete e o primeiro sentimento que vinha era o de derrota. Então, eu acolho essa sensação imediata. Mas se não fosse a resistência, a população negra teria sido exterminada. Não seríamos maioria da população.
A atual forma de atuação do Movimento Negro traz algo de novo para o cumprimento desse propósito?
Eu tenho dificuldade para responder isso. Existe uma tendência na política brasileira, na dinâmica da política no mundo de valorização da ação individual em detrimento da ação coletiva, de maneira que fica parecendo velho esse negócio de se organizar coletivamente. Talvez seja velho, mas, ao mesmo tempo, do ponto de vista de nossas tradições, nada tem mais força de atualidade do que olhar para trás e observar que em nossas experiências da resistência humana, nossa sobrevivência só foi possível graças à associação, ao trabalho coletivo. Hoje é muito complexo disputar na mentalidade dos mais jovens esse lugar da organização política, de se gastar em horas de reuniões, construir junto na adversidade, na divergência. Uma ação coletiva organizada politicamente por grupos do Movimento Negro, nesse contexto, é algo revolucionário.
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Quero receberQue outros fatores têm afetado o avanço dessa agenda e dessa perspectiva de luta?
Ainda existe uma distância incalculável entre o discurso e a prática no que diz respeito ao cenário político brasileiro. Mesmo que seja importante reconhecer como vitória nossa a mudança no discurso. É vitória dos movimentos negros ter colocado a agenda racial no discurso progressista, inclusive de maneira a causar constrangimento. Lideranças e organizações brancas brasileiras tiveram que acolher a agenda racial para manter a legitimidade. Falta avançar na prática.
O que dizer, então, acerca das propostas de desmilitarização das polícias?
O Movimento Negro precisa formular a sua proposta para segurança pública no Brasil. Isso ainda não está pronto. Setores progressistas que, tradicionalmente, discutem direitos humanos e enxergam na desmilitarização uma solução para o problema. É um passo importante, mas a solução vai além. Essa formulação não está consolidada no Movimento Negro. Se você desmilitariza e não mexe na lei de drogas, não discute o que criminaliza boa parte das pessoas negras, qualquer polícia vai cumprir o papel de aprisionar, prender e matar pessoas negras. Qualquer polícia, por mais comunitária que seja, se não for acompanhada de um sistema judiciário que não seja racista, discriminatório e seletivo, não vai resolver o problema.
A questão da redução da maioridade penal faz parte dessa formulação necessária?
Não está no manifesto dessa jornada do 24, mas faz parte. Está no bojo dessa incompreensão do que é a violência racial no Brasil contra a juventude negra. Uma análise das políticas sociais dos governos Lula e Dilma ajudam a pensar isso. Uma família que mora em um apartamento do Minha Casa, Minha Vida e que recebe o Bolsa Família é a mesma do menino morto pela polícia. Esse atravessamento, as políticas não atendem e não há um debate sobre isso. Existe uma preocupação com a política social e compensatória de um lado, mas os olhos estão fechados para a polícia matando o moleque filho da mulher que tem o nome dela no contrato do Minha Casa, Minha Vida. Isso é um ponto cego para o campo progressista. É preciso ter coragem para lidar com isso.
No último dia 28 houve uma plenária de avaliação sobre os atos de 24 de agosto. Quais as próximas ações?
Como a violência é sistêmica e permanente no tempo, é preciso também reconhecer a incrível capacidade criativa do Movimento Negro. Sacamos de uma campanha nova a cada período para o mesmo tema e fazemos isso desde antes da abolição da escravidão. Temos atualizado a reivindicação de sempre! O povo negro quer viver. Nós temos direito a viver. A jornada continua. Dia 24 agosto, aniversário da passagem de Luiz Gama para a ancestralidade, foi o início. Nos meses seguintes, teremos audiências públicas no Brasil inteiro. No 7 de Setembro levaremos essa agenda. E teremos uma importante mobilização nacional em 20 de Novembro. Então, essa jornada é de 24 a 20, de Luiz Gama a Zumbi.
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