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O casal negro esquecido que lutou pela educação no Brasil

Em homenagem ao mês das crianças e ao dia das professoras e professores (15 de outubro), a Coluna Presença Histórica desta semana evidencia a atuação de um casal negro em favor da educação e instrução de crianças no Brasil oitocentista. A grosso modo, educação está voltada para a concepção escolar, direcionada para uma carreira acadêmica, enquanto a instrução privilegia a formação voltada para os ofícios - muitas vezes exaustivos - do mercado de trabalho.

Em 1886, no contexto das lutas de escravizados e de abolicionistas pelo fim da escravidão, o periódico da Corte, Rataplam, publicou uma homenagem a uma das damas de companhia da princesa Isabel.

"Há de a História destacar, num alto relevo de ouro, o [nome] da Exma. Sra. Amanda Paranaguá Dória. A causa das crianças é o seu trabalho, o seu enlevo, o seu sonho, o seu ideal. (...) Há de ser cognominada no futuro - a mãe dos analfabetos". Ao contrário do que dizia essa nota publicada ao lado de um desenho da dama laureada por ramos de louro e medalhas, o futuro (quase) esqueceu Amanda, seu esposo e a luta de muitas outras pessoas negras pela educação.

"Amandinha", como era carinhosamente chamada pelos mais próximos, nasceu em Salvador, capital da província da Bahia, em julho de 1849. Sua família participou ativamente das lutas pela Independência do Brasil naquela província, assim como a família do seu esposo, Franklin Américo de Menezes Dória, que nasceu na Ilha dos Frades, incrustada na Baía de Todos os Santos, em julho de 1836.

Amanda fez seus estudos num colégio para meninas em Niterói (RJ) que incluía o ensino de língua portuguesa, religião, história, francês, inglês e contabilidade. Além disso, a moça criou-se versada na música, tocando piano muito bem, como dava notícias a própria princesa Isabel em carta para sua mãe.

Franklin, por sua vez, aprendeu a ler e calcular com seu pai ainda na Ilha onde nasceu e, posteriormente, passou a estudar em Salvador, sempre aos cuidados paternos, que lhe enviavam bilhetes com orientações.

Em primeiro de março de 1852, José Ignácio Dória redigiu a seguinte missiva ao seu filho: "acabo de receber esses livros, os quais te remeto com a gramática inglesa, e quanto ao dicionário aceita que é oferecimento do reverendíssimo senhor (...) Arsênio, até eu fazer aquisição de um capaz, o que terá lugar qualquer dos dias, porque os que há no mercado são pobres". Recomendava ainda que Franklin, de 16 anos, se aplicasse em inglês, geografia, filosofia e francês, a fim de preparar-se para a Faculdade de Direito de Olinda, onde se formou mais tarde, em 1856.

Educação para negros numa sociedade escravista

Amanda e Franklin foram apontados como sendo mulatos, o que diz muito a respeito das preocupações familiares sobre suas formações educacionais. Afinal de contas, a sociedade brasileira orientada pela escravidão de pessoas negras certamente daria conta de apresentar sérias dificuldades a qualquer pessoa de cor livre ou liberta - ainda que ricas, como era o caso.

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A cor negra, dentro de uma sociedade que traficou e escravizou africanos e seus descendentes, funcionava como um estigma mesmo entre aquelas pessoas que, apesar de negras, nunca haviam tido proximidade com o cativeiro. Prova disso foram os ataques racistas sofridos por Franklin ao longo de sua carreira política, os quais apontavam com depreciação seus cabelos crespos e sua cor.

André Rebouças e Machado de Assis, amigos íntimos do casal, sabiam bem como a educação era elemento propulsor importante numa sociedade extremamente hierarquizada e cheia de gargalos, como a do Brasil oitocentista.

Ao casar com Franklin, na Corte, em 1868, Amanda passou a acompanhar o marido em suas atividades políticas (tendo ele sido deputado por várias legislações e presidente de província). Em junho de 1880, o casal mudou-se para Recife, por conta da nomeação de Franklin para a presidência de Pernambuco.

Lá, Amandinha promoveu ações para arrecadar fundos em benefício de orfanatos, especialmente para a Colônia Orfanológica Isabel, destino de meninos humildes, das mais variadas cores. Essa colônia era um espaço de instrução, que visava admoestar as crianças nas expertises da moral, da religião, da literatura, da agricultura e das artes.

Em 1881, na tribuna da assembleia provincial pernambucana, Franklin afirmou que "todas as nações cultas consideram a instrução como um elemento essencial, não só da sua grandeza e prosperidade, mas também da sua segurança material. Todas elas, pois, ocupam-se incessantemente de aperfeiçoar as suas instituições de ensino".

E logo lamentou as dificuldades do Estado em oferecer educação e instrução para todos, responsabilizando as mazelas das contas públicas pelo péssimo diagnóstico que traçou.

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A pedagogia do esquecimento

Na volta para a Corte, naquele mesmo ano de 1881, Amandinha passou a dedicar-se ainda com mais afinco à causa da educação e da instrução. Tal foi o seu trabalho que passou a ser citada nos jornais do Rio de Janeiro por conseguir vultosas quantias de gente graúda do império para o investimento em instituições educacionais.

Ela mesma fazia questão de participar de eventos escolares que premiavam estudantes por seu ótimo desempenho ao longo do ano letivo. Foi por esse empenho que um articulista rendeu-lhe o título de "mãe dos analfabetos", profetizando que a História não lhe esqueceria, mas a política de memória quase lhe apagou.

Franklin rivalizou com Ruy Barbosa, seu conterrâneo e correligionário, a liderança por reformas no ensino do Império, procurando sanar precariedades e ampliar o alcance educacional. Ruy saiu lembrado como defensor da educação e Franklin, assim como sua esposa, também foi relegado ao quase completo esquecimento.

É sintomático o esquecimento seletivo e estratégico da atuação de pessoas negras na área da educação e instrução públicas no Brasil. Este apagamento constrói limites explícitos, os quais circunscrevem a população negra à condição de escravidão ou de passividade diante das questões sociais tão caras ao país.

No Brasil oitocentista, a luta por melhores condições das escolas e do ensino significava a possibilidade de potencializar a difícil ascensão social de pessoas negras numa sociedade escravista e racista. A educação seria mola propulsora de indivíduos de cor num abismo cruel construído pela ideologia de uma hierarquia racial calcada na escravidão, da qual Amanda, Franklin, André Rebouças e Machado de Assis tinham total conhecimento.

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Nesta luta contra o apagamento de pessoas negras importantes para a compreensão da história do Brasil é que pude estudar a trajetória de Amanda e Franklin ao longo do século 19 e 20.

Esta investigação rendeu um livro chamado "Jogo de Damas - Amanda Paranaguá: memória, baianismo e poder na Corte do Brasil e além (1849-1931)", publicado em 2022, pelas editoras da Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual de Feira de Santana.

Num país racista, a consciência histórica e a educação são elementos fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva para todas e todos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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