Os direitos indígenas e quilombolas são maiores que a 'lei mineral'
Em uma carta divulgada no início de outubro, cinco associações de comunidades indígenas e quilombolas do Vale do Acará, nordeste do Pará, denunciaram um conjunto de violências perpetradas pela mineradora Norsk Hydro, multinacional norueguesa que atua no estado há cerca de 30 anos com os empreendimentos Hydro Albras e Hydro Alunorte no município de Barcarena.
A denúncia destaca sérias violações de direitos humanos e dos direitos ancestrais dessas comunidades, sobretudo na integridade e seguridade de seus territórios e modos de vida coletiva.
Como dito na carta, há 20 anos a Norsk Hydro construiu um mineroduto que atravessou parte dos territórios tradicionais das comunidades na região. Agora, a empresa busca ampliar os minerodutos que rasgam a paisagem local para transportar minérios entre Paragominas e Barcarena, gerando graves riscos para esses grupos, como insegurança alimentar, invasões territoriais, episódios de assédio e ameaça à segurança das famílias quilombolas e indígenas.
Apesar da empresa ou mineradora afirmar seu "compromisso" com a sustentabilidade e que estabelece um diálogo pleno com as comunidades, como dispõe a Convenção 169 da OIT, o que se percebe é a reprodução de práticas colonialistas e predatórias que em nada respeitam as populações locais e as formas de conservação da sociobiodiversidade. Além disso, a conivência do aparato policial estatal do Pará com a atuação intrusiva da Hydro tem agravado ainda mais o cenário de violências na região. Alguns aspectos desta problemática já foram alvo de reflexão na Presença Histórica.
Minerar é preciso? Breve história da mineração no Brasil
Engana-se quem pensa que os projetos de mineração em territórios tradicionais na Amazônia, tanto indígenas quanto quilombolas, são um fenômeno recente. Desde o século XIX, pelo menos, localizamos relatos históricos sobre a exploração sistemática de ouro em determinadas áreas da região amazônica. Um bom exemplo é a região do rio Gurupi, que recebeu incentivos de mineração tanto da Província do Pará quanto da Província do Maranhão.
O governo provincial maranhense criou colônias nessa região, entre os rios Gurupi e Maracaçumé, e contratou trabalhadores chineses para explorar ouro, administrados pela Companhia Maranhense de Mineração. Além desses imigrantes, os próprios quilombolas e mocambeiros que se estabeleceram às margens do Gurupi - a exemplo da comunidade de Itamoari, Camiranga e Bela Aurora - também realizavam a extração do ouro como forma de subsistência econômica e de sua territorialização na região.
Porém, as perspectivas de exploração mineral tomaram novos rumos no século XX, especialmente durante o primeiro governo de Getúlio Vargas. Ao longo da década de 1930, Vargas traçou estratégias para nacionalizar as reservas minerais e garantir o monopólio de exploração dessas riquezas encontradas no subsolo brasileiro. Aqui, foram criados o Departamento Nacional da Produção Mineral (1934) e o Código de Minas (1940), que fomentaram a mineração em todo território nacional, regulando e fiscalizando as ações desse tipo de indústria no Brasil.
É a partir desse contexto que podemos localizar algumas iniciativas para a exploração mineral estatizada em áreas ocupadas por grupos indígenas, sob a administração do então chamado SPI (Serviço de Proteção aos Índios), e comunidades negras rurais, que eram vistas como "mestiças" ou "caboclas", a partir de estudos geológicos e geofísicos. Tais perspectivas seriam ampliadas anos mais tarde, com novas diretrizes durante a ditadura civil-militar.
Com a ditadura, um novo Código de Mineração foi estabelecido em 1967, substituindo o anterior Código de Minas. Através do Código de 1967, é possível observar como um novo regramento foi implementado para abrir a economia brasileira ao capital internacional, regulando a atuação de empresas multinacionais na exploração mineral no Brasil.
Em suma, temos aqui a consolidação do capital global associado, no país, à mineração e a um setor que tem crescido desde então; bem como, a todos os seus efeitos devastadores no território nacional, sobretudo na região amazônica.
Vale lembrar aqui o que foi Serra Pelada e o massacre de Eldorado dos Carajás, ambos tendo envolvimento da Vale. Ou ainda, a grave situação vivida pelos yanomami desde a década de 1970, e que se manteve até os dias atuais, aprofundando uma crise humanitária sem precedentes, em virtude da contínua atuação de garimpos ilegais nessa área indígena. Um legado dos tempos da ditadura e das táticas de omissão do Estado no Brasil, ontem e hoje.
Outro desses legados devastadores é presente até os dias de hoje em Oriximiná (PA), na calha norte do rio Amazonas, onde projetos de mineração impactam as populações tradicionais desde fins da década de 1970, sobretudo as comunidades quilombolas. É nesse município paraense que se localiza a Comunidade Quilombola de Boa Vista, a primeira a ter suas terras reconhecidas e certificadas enquanto território quilombola em 1995, além de outros quilombos (titulados ou não) e de importantes unidades de conservação como a REBIO do Rio Trombetas e a FLONA Saracá-Taquera.
Porém, isso tudo não significou o fim dos empreendimentos mineradores na região, sobrepondo-se a esses territórios tradicionais e unidades de conservação. É o caso da empresa Mineração Rio do Norte S.A, que segue atuante em Oriximiná causando muitos impactos às comunidades quilombolas. Inclusive, é essa empresa que fornece a matéria-prima (bauxita) para a produção de alumínio da Hydro Alunorte, em Barcarena.
Mesmo com o reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas e indígenas e da legislação que ampara a proteção e conservação da natureza, os interesses minerários e seus empreendimentos ainda se mantém como uma realidade. Nisso, seguem pressionando os territórios ancestrais e fazendo valer outra lógica de relações a partir da violência, da truculência e da violação de direitos dessas comunidades.
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OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberÉ como questiona Aloízio dos Santos, liderança do quilombo Tapagem, no documentário O Quilombo é o Meu Lugar: "Qual é a maior? Se a lei quilombola ou a lei mineral? Eles não souberam me responder. Que se uma lei tá na Constituição, que a terra é dos quilombolas, então bora respeitar a terra dos quilombolas". A compreensão e defesa de seus direitos mobiliza o enfrentamento coletivo a essas arbitrariedades impostas e nos faz refletir sobre o modo como esses projetos são conduzidos.
Logo, os problemas estruturais envolvendo a mineração na Amazônia tornaram-se algo crônico na realidade local e ponto de sérias discussões governamentais nos últimos anos. Ao mesmo tempo que diagnósticos de órgão como IBAMA e ICMBio revelam os graves impactos socioambientais na região, em consonância às experiências vividas e relatadas pelas diversas comunidades locais, o Estado ainda mantém a exploração mineral enquanto uma via de desenvolvimento da economia nacional.
Assim, diante da atual emergência climática e da necessidade de empreender novos rumos para a vida no planeta, uma importante questão se coloca nesse cenário, sobretudo na Amazônia: que tipo de desenvolvimento queremos em nossa região? E qual o projeto de futuro tem sido articulado com as comunidades locais?
Os diferentes episódios aqui destacados revelam como o racismo ambiental está articulado contra estas comunidades, afetando profundamente seus territórios e formas de vida em prol da manutenção de grandes empreendimentos ligados ao capital global e às commodities. A despeito das muitas violações, esses sujeitos não ficam acuados, em silêncio, assistindo a destruição de seu lar ancestral. A mobilização e as lutas de indígenas e quilombolas são o caminho para a garantia de seus direitos e cidadania. Resistência para a manutenção de sua existência diante deste maquinário hegemônico de moer gente e destroçar vidas - sobretudo negras (quilombolas) e indígenas.
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