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Opinião

Estéticas negras e indígenas e os futuros ancestrais no Brasil

O advento do mês da Consciência Negra seguiu marcado no Brasil pelas violências cotidianas do racismo, inclusive no campo da produção das representações. Um dos ápices foi a notícia de plágio conceitual do projeto "AmaElo", de Emicida, em uma peça publicitária de promoção da Bauducco, lançada em outubro, com música interpretada pelas artistas Juliette e Duda Beat.

Após a reação assertiva de Evandro Fióti, CEO da Lab Fantasma, produtora e gravadora responsável pelo projeto, acusando o plágio, a campanha foi cancelada pela empresa alimentícia.

Em entrevista recente, Fióti destacou a revolta não apenas com o caso, isoladamente, mas com os efeitos do "pacto narcísico da branquitude", que afeta também o tratamento desigual dispensado a artistas brancos e negros, com prejuízo destes últimos.

"Quando eu vejo essa obra ser apropriada dessa maneira, esvaziando seu sentido, isso me deixa indignado. (...) É como se a todo momento dissessem: ‘Esse não é o lugar de vocês’. ‘Vocês não merecem esse reconhecimento nem quando vocês constroem um projeto de excelência'", disse.

Práticas antiéticas na relação com a produção de conhecimento envolvendo pessoas negras e indígenas no Brasil não se restringem à área artística. Configuram, antes, um traço de continuidade de relações de poder assimétricas, lastreadas por diferenciações sociais racializadas, em que sujeitos não-brancos são historicamente naturalizados como objeto e/ou fontes de informação para pesquisas acadêmicas; tratados como seres cuja cultura pode ser usurpada e indiscriminadamente transformada, massificada, bem ao gosto da indústria de entretenimento e à revelia de eventuais respaldos legais em favor dos afetados.

Transgredindo narrativas

O episódio alcançou repercussão num momento em que observa-se movimento de crescente interesse pela produção de artistas e curadores negres que propõem releituras da história do Brasil a partir de prismas diversos, dentre os quais o de gênero e o da explicitação do racismo (inclusive em sua forma epistêmica) antinegro e antiindígena.

Exemplos significativos são o álbum Atlântico Corpo, da Banda Pelos; os trabalhos de Glicéria Tupinambá, Daiara Tukano, Denilson Baniwa e Naine Terena; as exposições "Dos Brasis", curadoria de Igor Simões, Lorraine Mendes e Marcelo Campos; "Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito", retrospectiva com obras do fotógrafo curada por Janaína Damasceno.

Também vale citar "Direito à Forma", de curadoria de Igor Simões, Jana Janeiro e Deri Andrade; "Mestre Didi - os iniciados no mistério não morrem", curada por Igor Simões e equipe do Inhotim e integrante do Programa Abdias do Nascimento e o Museu de Arte Negra, promovido pela instituição; além da "35a. Bienal de São Paulo: coreografias do impossível", curada por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes, e Manuel Borja-Villel.

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Também têm merecido renovada atenção as obras de profissionais com longa trajetória, como o artista plástico Jorge dos Anjos, o multiartista Ricardo Aleixo, a literata Conceição Evaristo, a ceramista Lira Marques e o ativista e filósofo Ailton Krenak, recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras.

Para além do mercado

É certo que a chamada indústria criativa tem sido cada vez mais afetada pela busca do alcance dos parâmetros de integração de fatores sociais, ambientais e de governança no mercado de capitais (ESG), por parte de instituições culturais e empresas patrocinadoras - o que impulsiona o fenômeno descrito, amplificando vozes e estéticas diversas no mundo das artes e na produção intelectual.

Cabe observar com atenção, contudo, que o cerne dos enunciados dessa produção não é algo novo - tem sido dito e inscrito de variadas formas, mas ignorado por audiência desatenta.

Sim. Dos calundus, reinados, carimbós e sambas de roda; do TEN (Teatro Experimental do Negro) ou das obras de Abdias do Nascimento, Manoel Querino, Mestre Didi e Carolina Maria de Jesus à iniciativas mais contemporâneas como o Prêmio Leda Maria Martins e a Segunda Preta (Belo Horizonte/MG), o grupo Nóis de Teatro (Fortaleza/CE); o grupo Picolé da Massa (Manaus/AM); Sopapo Poético (Porto Alegre/RS); Sarau da Onça (Salvador/BA), as práticas de artistas, fazedores e detentoras/es de culturas de indígenas e de matriz africana têm oferecido, há muito tempo a possibilidade de pensar e refazer o Brasil a partir de bases epistêmicas importantes e não exclusivamente eurocêntricas.

No âmbito das políticas públicas para a cultura, observa-se a pouco conhecida atuação de profissionais (também formados nas vivências dos movimentos sociais negros e indígenas) pela implementação de ações que contemplem a diversidade cultural do país, em esforço muitas vezes solitário no interior das administrações públicas municipais, estaduais e do governo federal.

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Exemplo desse esforço é o contexto de surgimento do Festival de Arte Negra de Belo Horizonte (FAN), em 1995. O Festival, que teve sua 12a. edição entre 23 e 29 de outubro de 2023, foi gestado juntamente com um conjunto de ações reivindicadas pelos movimentos sociais negros daquela cidade quando eram estabelecidas institucionalmente as políticas municipais de cultura e de patrimônio, desdobramentos das lutas que confluíram na Constituição de 1988.

De acordo com a pesquisadora Camila Contão, em diálogo com intelectuais e artistas como Gil Amâncio e Marcos Antônio Cardoso, que participaram desse movimento, dentre as ações reivindicadas junto a políticos e gestores públicos, à época, estavam as que garantissem o direito à cultura e à memória, a partir da valorização da historicidade das vivências das comunidades negras na cidade; sem o caráter costumeiramente hegemônico e elitista de tratamento dispensado a essas referências culturais de matriz africana, e que tendia à sua subalternização ou exotização, abordando-as pela chave do lúdico ou do folclórico e negligenciando as epistemologias que sustentam esses fazeres culturais.

Poucas daquelas solicitações foram incorporadas à política de cultura da cidade, destacando-se, contudo, o próprio FAN; a celebração do Tricentenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares e os tombamentos do Ilê Axé Wopo Olojukan e da sede da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá - todos em 1995. De todo modo, nos últimos anos, a passos lentos mas importantes, as políticas culturais da PBH têm contemplado de maneira mais justa, em seus editais, critérios como raça/etnia e gênero.

Assim, as oportunidades recentes, sabiamente abraçadas por artistas e curadorias transgressoras, transformam-se em chamado à sociedade para diálogo franco e profícuo, que pode ser transformador para o país. "O futuro será negro ou não será"!

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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