Rodrigo Ratier

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Repetência alimenta 'migração' do Ensino Médio para EJA, diz Censo Escolar

Principal radiografia da educação brasileira, o Censo Escolar divulgado hoje (22) evidenciou um movimento de fuga do Ensino Médio para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). A tendência, que já havia aparecido em outras edições, agora conta com novo indicador para quantificar o fenômeno, que desvirtua os propósitos da EJA.

A Educação de Jovens e Adultos é conhecida por acolher trajetórias acidentadas na educação. Estudantes que por uma razão ou por outra tiveram de largar a escola — por gravidez na adolescência, trabalho, desinteresse, repetência — têm na modalidade uma chance de concluir os estudos de forma mais rápida. É uma modalidade frequentada predominantemente por pretos e pardos, que somam 8 a cada 10 alunos.

Em geral, dá para cursar cada série na metade do tempo — 6 meses em vez de 1 ano —, com carga horária reduzida. Ou seja, é uma etapa com formação aligeirada.

A apresentação do Censo Escolar quantifica o movimento: "De 2020 para 2021, aproximadamente 107,4 mil alunos dos anos finais do ensino fundamental e 90 mil do Ensino Médio migraram para a EJA".

"É positivo que o Ministério da Educação tenha destacado a EJA na apresentação do Censo Escolar", afirma Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP. "O Brasil tem um passivo imenso que é fundamental enfrentar."

Fernando se refere ao 68 milhões de pessoas com 18 anos ou mais que não frequentaram a escola ou não completaram a educação básica. Cerca de 9 milhões têm entre 18 e 29 anos, segundo dados do IBGE.

Alunos fora do lugar

São alunos com histórico de retenção e de distorção idade-série, mas o "atraso" nos estudos pode ser bem pequeno. A idade mínima para a EJA no Fundamental é 15 anos. No Médio, o limite inferior é 18 anos. Em alguns casos, o aluno com apenas uma repetência no Médio poderia optar pela migração. É um uso equivocado da EJA para corrigir um problema que deveria ser sanado na escolarização regular.

Enquanto os anos iniciais do Fundamental concentram matrículas sobretudo de adultos, com idades acima de 30 anos (a mediana é 48 anos), os anos finais e o Ensino Médio são dominados por jovens (medianas de 26 e 23 anos, respectivamente).

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A tendência, que começa a aparecer já no 4º ano do Fundamental, ganha contornos mais graves ao longo do Ensino Médio. No 1º ano da etapa, 1,6% dos alunos migram para a EJA. Poderia ser até mais gente, mas estados e municípios têm dado pouco atenção à etapa. As matrículas caem ano a ano — hoje estão na casa dos 2,5 milhões, quase 1 milhão a menos que em 2018. "Isso indica que não temos rede escolar para receber esses estudantes. O fechamento de salas de EJA nas redes municipais e estaduais é um processo conhecido", diz Fernando.

O indicador de migração vem acompanhado de outros mais robustos e mais incômodos: 7,1% de evasão e 2,4% de repetência, no pico observado no 1º ano do Médio. "São as causas de migração para a EJA", afirma Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

"Políticas fracassadas de Ensino Médio, falta de seguridade social para famílias e pobreza geram exclusão escolar no Ensino Médio", completa.

Existe política, falta escala

Considerado o grande gargalo da Educação Brasileira, o Ensino Médio tem sido alvo de um pacote de medidas do Ministério da Educação (MEC). O Censo registrou aumentos nas matrículas em tempo integral e na educação profissionalizante, tradicionalmente menos afetadas pelo abandono. E programas como o Pé-de-Meia incentivam financeiramente os alunos a concluírem os estudos.

O que se questiona é o tamanho das iniciativas. O tempo integral chega a 21% dos estudantes. Em que pese uma alta de nove pontos percentuais desde 2019, há enorme discrepância entre os estados. Em Pernambuco, 66% estudam o Médio em tempo integral. No Distrito Federal, apenas 5%.

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Quanto à educação profissional, apesar do aumento de 12% das matrículas (26% desde 2019), quase metade das vagas é para o período posterior ao Ensino Médio. Ou seja, não ajuda a estancar a sangria na etapa.

O Pé-de-Meia, por sua vez, pode favorecer a permanência de 2,5 milhões de estudantes, mas levanta dúvidas por conta dos valores por aluno. "É uma ajuda pequena para os estudantes. As famílias seguem em insegurança social e o trabalho segue precário", diz Andressa.

Dívidas históricas

Outra parte do problema é questão da falta de atratividade do Ensino Médio. A polêmica "reforma da reforma" — projeto de lei do MEC para modificar a fracassada proposta do Novo Ensino Médio (NEM) — está parada na Câmara sem acordo para ser votada. "Os estudantes que estão com a família em pobreza se perguntam: vão para a escola para quê? Para assistir aula de 'Projeto de Vida'?", questiona Andressa, em referência à disciplina da carga diversificada do NEM.

Também a Educação de Jovens e Adultos merece maior atenção. Sistematicamente desprestigiada e subfinanciada, a EJA recebeu um acréscimo orçamentário no governo Lula 3. Fernando Cássio destaca que a modalidade vem se convertendo de uma política de escolarização — com especificidades para atender um público diferenciado — em uma política de certificação, com foco apenas no exame para tirar o diploma. "É um efeito perverso justamente para quem teve menos chance de frequentar a escola", afirma.

Os dois especialistas afirmam, ainda, que falta um olhar sistemático para a EJA. "Ela sempre foi relegada pelas políticas públicas e muito trabalhada por fora das ações estruturais", afirma Fernando. "Apesar da melhoria no financiamento, a EJA ainda não recebeu a atenção devida no novo governo. É preciso pensar numa política de Estado", finaliza Andressa.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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