Na Amazônia em crise, até floresta alagada pega fogo
Secas severas facilitam a ocorrência de incêndios, provocando alta mortalidade de árvores, inclusive em áreas de difícil acesso na Amazônia. Tradicionalmente, a umidade da região impede a propagação natural do fogo, mas a crescente frequência de secas extremas e o desmatamento tornam as florestas mais vulneráveis. Até mesmo áreas alagadas durante a maior parte do ano são afetadas pelos incêndios, cujos impactos podem durar décadas.
Um estudo realizado pelo Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) analisou uma série de imagens de satélites de 35 anos, entre 1985 e 2017, em busca de marcas deixadas na vegetação pelo fogo nas proximidades do Parque Nacional do Jaú, no Amazonas. A pesquisa levantou um histórico de incêndios de grandes proporções em um tipo de habitat que, ao senso comum, jamais poderia pegar fogo: os igapós, ou florestas inundadas.
O biólogo Jochen Schongart, um dos responsáveis pela pesquisa, estima que 9 em cada 10 incêndios nesses habitats estão ligados ao fenômeno climático do El Niño, que provoca secas severas na região.
Durante esses períodos, o solo arenoso dos igapós, incapaz de reter água, torna-se altamente inflamável devido a folhas de lenta decomposição, e as raízes superficiais das árvores são rapidamente destruídas pelo fogo, causando a morte da maior parte da floresta imediatamente.
"Quando temos um El Niño, há um aumento nas temperaturas e diminuição de chuvas", explica Schongart. "Consequentemente, as árvores transpiram mais, para lidar com esse calor, e isso deixa a floresta com menor umidade. Além disso, com menos chuvas, as inundações são atrasadas, o que quer dizer que essas florestas ficam secas por mais tempo."
A pesquisa encontrou uma área que pegou fogo em 2016 e em 2023, em dois eventos de El Niño. O segundo incêndio destruiu totalmente o que restava da vegetação.
Qualquer novo incêndio em uma região que já passou por queimada causa um estrago fatal, não mais com aquele fogo baixo nas raízes, mas com chamas enormes que consomem os troncos remanescentes.
Jochen Schongart, biólogo
A perda dos igapós afeta diretamente a fauna aquática da região, pois essas áreas servem de refúgio para peixes e outras espécies durante as cheias. Um estudo publicado no Journal of Applied Ecology destaca que incêndios nos igapós diminuem a diversidade animal e prejudicam a qualidade da água, o que potencialmente impactara negativamente o futuro da pesca, uma atividade vital para comunidades ribeirinhas e urbanas da Amazônia.
Secas extremas e mais frequentes
A recuperação dessas florestas é lenta. O estudo de Schongart demonstra que, mesmo após 40 anos, a diversidade de espécies de árvores em uma área incendiada não ultrapassa 20% do nível de uma floresta madura.
Porém, os eventos extremos de El Niño, que é o fenômeno de aquecimento das águas do oceano Pacífico, têm ocorrido em intervalos curtos, ocasionando uma frequência de incêndios que impede a recuperação da vegetação. É o que mostram as secas históricas de 2005, 2010, 2015-16 e 2023-24, todas relacionadas ao fenômeno.
Segundo Schongart, o aquecimento global, impulsionado pela emissão de gases de efeito estufa, é o fator que tem aumentado a intensidade dessas secas. "Isso já nos força a falar em adaptação a uma nova realidade, uma em que a ameaça do fogo é mais urgente", aponta o biólogo.
Fogo até mesmo em áreas protegidas
O Parna Jaú (Parque Nacional do Jaú) possui cerca de 2,2 milhões de hectares de extensão, localizado entre os municípios de Novo Airão e Barcelos (AM), na região do Baixo Rio Negro, e recebe esse nome por situar-se na bacia do rio Jaú. Criado em 1980, o parque é uma unidade de conservação de proteção integral, onde a presença humana é restrita.
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Quero receberAnos mais tarde, em 2006, a criação da Reserva Extrativista (Resex) do rio Unini permitiu que as populações ribeirinhas que saíram do Parna pudessem ocupar um outro território, explorando os seus recursos de forma sustentável.
Segundo a Fundação Vitória Amazônica (FVA), que monitora ambas as reservas, há cerca de 10 comunidades ativas na Resex Unini e apenas 4 no Parna Jaú. A densidade populacional é baixa, com menos de uma pessoa por quilômetro quadrado em toda a região. No entanto, 79% das cicatrizes de fogo identificadas pelo estudo nessas áreas estavam a até 10 km dos assentamentos humanos.
"O fogo tem origem humana", afirma Jochen Schongart. "Porém, na maioria dos casos, são incêndios acidentais." A partir de sua experiência com as populações do Jaú e do Unini, a antropóloga Satye Candehof explica que as comunidades tradicionais utilizam o fogo para manejo do solo, um método antigo de preparar a terra para replantio, usando as cinzas. "A ocupação é pequena, e o fogo, historicamente, também era de pequena escala e controlado."
Atualmente, os incêndios no Jaú e no Unini não se comparam àqueles que tomam grandes regiões do sul do Amazonas e norte de Rondônia, onde queimadas ilegais em propriedades rurais são frequentes, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e levantamento do site InfoAmazonia. "Essas comunidades tradicionais não são as responsáveis pelo aumento dos incêndios que estamos vendo", ressalta Satya.
No entanto, o caso do Parque Nacional do Jaú mostra como as mudanças climáticas podem tornar mesmo áreas protegidas e isoladas mais vulneráveis a incêndios de grandes proporções, com o manejo do fogo rapidamente saindo do controle. Fabiano Lopez da Silva, CEO da FVA, destaca que, nos últimos cinco anos, os meses de agosto a novembro têm sido dedicados a combater emergências. "Nossa luta agora é para que essas áreas de proteção não desapareçam", comenta Fabiano.
Mas essa nova realidade não contesta a efetividade das reservas na proteção desses habitats. Outra pesquisa, publicada em 2009 no jornal científico PLOS ONE, atestou que os efeitos negativos de incêndios durante eventos de El Niño são significativamente maiores em florestas fora de áreas de proteção e próximas a rodovias.
O fogo é um 'novo normal'? Como lidar?
Enquanto o Instituto Chico Mendes (ICMBio) é responsável pela gestão dos parques nacionais, a FVA atua no Baixo Rio Negro com monitoramento da região e capacitação de lideranças locais. Recentemente, a ONG tem treinado brigadistas comunitários para combater o fogo, mas, segundo Fabiano, a estrutura disponível ainda é insuficiente.
"Não dá para imaginar que uma capacitação seja o suficiente para responder a essa situação, que demanda até mesmo da construção de cisternas para armazenamento de água potável", lamenta.
Colocar a brigada comunitária lutando contra incêndios na Amazônia com abafadores, contra chamas que chegam a 40 metros de altitude, é pedir para a gente morrer.
Fabiano Lopez da Silva, CEO da FVA
Recentemente, o governo do Amazonas antecipou a contratação de 85 brigadistas para o Corpo de Bombeiros do estado. Fabiano, porém, defende a ampliação da estrutura de combate a incêndios, com o uso de hidroaviões, por exemplo. "A sociedade está se dando conta que estamos entrando em um problema novo sem a capacidade necessária", opina.
Além disso, no caso específico dos incêndios no Parna Jaú e na Resex Unini, abre-se um caminho para debater o manejo tradicional do fogo dentro das reservas.
"O que mais temos escutado de pessoas das comunidades é 'sempre fiz assim, mas neste ano perdi o controle", relata Fabiano, compartilhando o quanto as populações já notam o quanto "as florestas estão mais fracas". Ele completa: "Mas não adianta criminalizar o manejo de fogo das populações tradicionais sem que haja uma revisão completa da política agrária do país".
Schongart, por sua vez, sugere a proibição do uso do fogo justamente nos períodos de seca extrema: "Com modelos climáticos, podemos prever os eventos de El Niño e adotar políticas mais rigorosas nesses períodos."
No dia 10 de setembro, em Manaus, o presidente Lula e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assinaram o decreto que regulamenta a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, medida que define um centro integrado de para detecção e controle de incêndios. A política em questão permite queimadas controladas para fins agropecuários e de subsistência de comunidades tradicionais, mas proíbe o uso do fogo para desmatamento.
*Este texto contou com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Estudo das Adaptações da Biota Aquática da Amazônia, o INCT-ADAPTA.
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