Rodrigo Ratier

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Candidatas a escola cívico-militar são amostra distorcida da rede de SP

Na resolução que regulamenta a implementação do programa de escolas cívico-militares em São Paulo, o governo do estado estabelece critérios para seleção das escolas que vão adotar o modelo. Um deles é o desempenho escolar: o regulamento fala em priorizar escolas com menor resultado no Idesp, índice que mede a qualidade do ensino da rede estadual de SP.

Mas, na prática, a lista das 302 escolas interessadas têm perfil bem diferente: possui média do Idesp maior do que a da rede, poucas escolas entre as mais vulneráveis e um grupo maior do que o esperado na elite de desempenho.

É o que revela levantamento exclusivo realizado pela coluna, com base em cruzamento do edital para consulta pública das escolas interessadas no modelo cívico-militar e na tabela do Idesp por escola.

  • A média do Idesp das escolas candidatas é superior à média estadual tanto nos anos finais do Ensino Fundamental (3% maior) quanto no Médio (12% maior).
  • As interessadas têm menos escolas entre a faixa das mais vulneráveis: apenas 6% nos anos finais do Fundamental 2 e 5% no Médio. O esperado, num conjunto igual à média do estado, seria 10%.
  • De outro lado, há mais escolas entre a "elite" do estado do que na média: 12% no Fundamental 2 e 14% no Médio -- novamente, o esperado na média é de 10%.

Críticos do modelo alertam que o resultado, que já é superior à média paulista, pode ser anunciado no futuro como uma falsa conquista do modelo cívico-militar.

"Distorcendo a amostra, acaba-se produzindo de maneira artificial uma melhoria no resultado. Privilegiando escolas de bom Idesp, passa-se a falsa ideia de que uma determinada política educacional é eficaz do ponto de vista da avaliação externa", diz Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP (FEUSP).

Em nota, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo diz que os dados do Idesp serão utilizados para selecionar as 45 unidades que tiverem o parecer favorável da comunidade escolar para a adesão ao programa — as votações nas escolas ocorrem na primeira quinzena de agosto. "As escolas com o menor desempenho terão prioridade para a seleção", afirma a nota.

Melhores notas, menos vulneráveis e mais escolas "de elite"

Cássio diz que amostras semelhantes à encontrada entre as candidatas à militarização têm sido "classicamente utilizadas" por várias redes de ensino do país para criar uma espécie de "efeito de demonstração" das escolas com propostas diferenciadas.

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"Privilegiam-se escolas que são mais centrais, que já são mais bem estruturadas, que atendem uma população com um nível de escolaridade maior ou que promovem ativamente esse tipo de seleção socioeconômica que favorece um determinado tipo de aluno", afirma o professor.

"É isso que já acontece com as escolas cívico-militares em outros estados. Ao contrário do que se promete, esse modelo de escola acaba atendendo os estratos socioeconômicos mais favorecidos dentro da rede pública."

O edital das cívico-militares afirma que no máximo 45 escolas poderão migrar para o modelo em 2025. É menos de 1% da rede estadual. Ao todo, 302 escolas (cerca de 6% da rede) manifestaram interesse em se tornarem cívico-militares. No total, 134 municípios (21% do total do estado) entraram com pedido.

São Paulo é a cidade com mais candidatas: 25 ao todo. Em seguida vêm Mogi das Cruzes (9), São Bernardo e Piracicaba (8). A região de Itapecerica da Serra, que também inclui Juquitiba, Embu-Guaçu e São Lourenço, conta com 14 escolas candidatas. A região de Limeira, que abrange ainda Cordeirópolis, Cosmópolis, Iracemópolis e Rio Claro, registra 11 postulações.


Estudo diz que outros critérios são desrespeitados

Os resultados obtidos pela coluna corroboram um levantamento realizado pelo Grupo de Estudo e Pesquisas em Políticas Educacionais (Greppe), da Unicamp.

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Utilizando a base das 2.022 escolas declaradas elegíveis para o modelo cívico-militar pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP), o Greppe constatou que as escolas estão fora de todos os critérios prioritários estabelecidos para a seleção: não priorizam territórios com maior vulnerabilidade social e com oferta do Fundamental 2, além de contemplar poucas escolas com altas taxas de reprovação, abandono e baixo Idesp.

Uma nota conjunta assinada por três sindicatos de trabalhadores da educação paulista afirma que o governo já utilizou a estratégia de atribuir bons resultados a uma amostra distorcida quando implantou o programa de ensino em tempo integral.

"Trata-se ainda de disseminar, mais adiante, talvez em período eleitoral, a falsa ideia de que tal programa [o das escolas cívico-militares] é eficiente, considerando-se que o Idesp das escolas que já não é inferior à média paulista, mas que poderá ser anunciado como resultado do disciplinamento imposto às comunidades", diz a nota.

O que há em um nome

As polêmicas relacionadas ao projeto receberam um reforço na última 6a feira (19). Em texto no UOL, o colunista Juca Kfouri revelou que uma das escolas candidatas ao modelo cívico-militar era a Jornalista Vladimir Herzog, de São Bernardo. Herzog, como se sabe, foi torturado e assassinado pela Ditadura Militar.

A diretora da escola acabou recuando no domingo (21), depois de mobilização que incluiu o Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, a Apeoesp e o Instituto que leva o nome do jornalista. "Em nenhum país verdadeiramente democrático, teríamos a associação — ainda que simbólica —, de um nome como o do jornalista Vladimir Herzog, a uma escola de ensino cívico-militar", diz a nota do Instituto Vladimir Herzog.

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Também em São Bernardo, outra escola de nome incongruente com a proposta de militarização manifestou interesse na proposta. É a E.E. Jean Piaget, que homenageia o cientista suíço inspirador do construtivismo, perspectiva de ensino que afirma que crianças e jovens são capazes de construir o próprio conhecimento, com orientação de adultos com boa formação. É uma visão da educação oposta ao modelo das escolas cívico-militares.

Abaixo, a íntegra da nota enviada à coluna pela Seduc-SP:

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) realizou entre os dias 24 e 28 de junho uma consulta com os diretores da rede para a manifestação de interesse na adesão ao programa das escolas cívico-militares. Participaram da consulta todas as escolas da rede, com exceção das unidades que:

- Oferecem ensino noturno;
- São instituição rural, indígena, quilombola ou conveniada;
- Têm gestão compartilhada entre Estado e Municípios;
- Ofertam exclusivamente modalidade de ensino de educação de jovens e adultos;
- Sejam a única unidade escolar da rede pública de ensino estadual no município que oferte ensino fundamental e médio regular na zona urbana.

Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp) serão utilizados para selecionar as 45 unidades que tiverem o parecer favorável da comunidade escolar para a adesão ao programa. As escolas com o menor desempenho terão prioridade para a seleção. Também serão considerados os critérios:

- Distância de até dois quilômetros de outra unidade que não optou pelo programa, em caso de mais de uma escola interessada na mesma cidade;
- Maioria simples de votos válidos a favor da implementação;
- Escolas com o maior número de níveis de ensino ofertados.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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