Volta ao Santos é gesto grandioso e chocante de um controverso Neymar
Como definir a volta de Neymar ao Santos? "Chocante" é pouco, "incrível" também, "loucura" esconde algo e "surpreendente" não revela tudo. Porque, do ponto de vista esportivo, não faz sentido. Se ídolos comparáveis como Romário, Ronaldo ou Ronaldinho Gaúcho também voaram para casa depois de enricar no hemisfério Norte, as opções foram diferentes. Romário e Gaúcho escolheram o Flamengo. Ronaldo, o Corinthians. Ainda que Neymar hoje tenha pouco mercado na Europa, no Brasil poderia enfileirar pretendentes, listar exigências e selecionar a dedo o clube que quisesse.
Elegeu o nosso Santos, um time quebrado, provinciano, ultrapassado e decadente. Incrédulo, o santista se pergunta se Neymar não tinha VPN para assistir a Série B e o Paulistão na Arábia Saudita. Ninguém rasga dinheiro e não dá para descartar, até pelo perfil dos envolvidos, que haja um esquema em curso. Por enquanto, a aposta é nebulosa, e os ganhos, incertos.
Especula-se a compra do clube por Neymar Pai, ou uma generosa comissão pela intermediação de uma possível venda aos árabes. Seja como for, Neymar se arriscou. Deixou pelo caminho U$ 65 milhões de contrato no Al-Hilal para ganhar R$ 1 milhão mensais. Abdicou do terceiro maior salário do universo do futebol para jogar... no Santos.
Procuro comparação possível e só encontro uma: Maradona. Seja ao deixar o Sevilla pelo Newell's Old Boys, em 1993, ou um quarto de século depois, já destroçado pelo vício e com os joelhos em ruínas, quando topou treinar o obscuro Dorados de Sinaloa, na segunda divisão mexicana. A história é contada na série Maradona no México, da Netflix.
Como "o mais humano dos deuses", conforme Eduardo Galeano, Neymar tem feito o possível para ser odiado. A vida ostentatória, a fama de cai-cai, os posicionamentos políticos e a pecha de mercenário são farta tentação aos rótulos: bolsonarista, mimado, machista, alienado. Explicam uma parte, escondem outra, desconsideram a complexidade.
Entre tantas maravilhas de sua trajetória alvinegra, me fixei em uma lembrança coadjuvante: o choro, ajoelhado no centro do gramado em Mogi Mirim, após a vitória nos pênaltis contra o time da casa. Era a semifinal do Paulista de 2013, sua passagem para a quinta final estadual consecutiva (seis meses depois, estaria no Camp Nou decidindo com um gol e uma assistência seu primeiro El Clásico contra o Real Madrid).
Nenhum ineditismo, Mogi Mirim, apenas mais uma semifinal de um desimportante Paulistão. No entanto, houve emoção, a mesma de sua reapresentação 12 anos depois. Não há por que suspeitar da sinceridade do sentimento. Neymar gosta do Santos.
Galeano escreve que a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. A transformação do esporte em indústria destronou a beleza que nasce da alegria de chutar uma bola. O moleque de vila (Projota), que começa pelo prazer de jogar, agora tem dever de trabalhar e tem a obrigação de ganhar ou ganhar (Galeano). Quanto mais sobe, mais preso está — pelos contratos, empresários, dores e contusões.
"Dei um abraço no meu pai, um abraço de que 'a gente conseguiu'". É espantoso que o mesmo Santos, tão desprezado por obtusos pangarés nos últimos anos, desperte o desejo de um craque enorme. Quero acreditar nesse lado passional à Maradona e numa escolha ilógica pela régua da competição e do capital, mas perfeitamente compreensível pelo prisma da emoção e do prazer.
Galeano, em um texto que parece escrito com Neymar em mente: "A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia. Por sorte ainda aparece nos campos, embora muito de vez em quando, algum atrevido que sai do roteiro e comete o disparate de driblar o time adversário inteirinho, além do juiz e do público das arquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade."
Se todo o resto do Projeto Neymar der errado, valeu pelo chacoalhão da chegada. O clube fez uma festa de ídolo internacional. Apagou minimamente o constrangimento pelo velório chinfrim de Pelé e o clima de velório pelos anos recentes na bola. Neymar nos lembrou que o Santos é do mundo, e o "obrigado" de Mano Brown ao pé do ouvido é o agradecimento de todo santista pela escolha chocante, incrível, louca, surpreendente.
23 comentários
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Denilson Donizete Fortunato
Povo tá doente com ideologia, amam ou odeiam pelo posicionamento político da pessoa e não pela sua arte ou talento, gosto de jogadores odiados pela esquerda e também gosto de jogadores odiados pela direita, porque gosto do seu talento em campo, e isso se estende para artistas também, enfim brigam por conta de corruptos e deixam de apreciar a arte.
Andre Scazufka Ribeiro
Texto muito bom. Parabéns!
Jose Claudio de Paula
Expressões mais amaldiçoados do que essas é impossível. O Santos FC é um patrimônio nacional: tem o maior nome entre todos, tem a camisa mais respeitada e tem um número que nenhum outro clube teve e nem jamais terá. A imortalizacao do número 10 pertence ao Santos. O clube que mais gols marcou na história do futebol, sendo que o gol é o único objetivo do jogo de futebol. Absolutamente nada conta num jogo de futebol a não ser o gol. O Botafogo foi rebaixado tantas vezes porém com toda dignidade e o atual campeão brasileiro. Palmeiras, Corinthians, Grêmio foram rebaixados porém nunca foram menores por causa disso. O revés faz parte da vida porém os fortes se recuperam. Mais difícil é suportar a cretinice da imprensa brasileira