Ronilso Pacheco

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Opinião

Preconceito sobre evangélicos é entrave para enxergar o real perigo

Religião volta ao debate, inunda as redes sociais e ocupa grande parte da mídia mainstream no Brasil, incluindo aí os "evangélicos", que se tornaram, no imaginário social, o arquétipo da ingerência da religião na vida pública e o grupo frequentemente associado, quase que automaticamente, com a extrema direita hoje.

Estamos ficando para trás no debate sobre os usos da religião pelas forças políticas extremistas no Brasil. Há falta de abordagem e análises qualificadas sobre as nuances da complexidade da relação religião-política-extrema direita e riscos para a democracia.

Além disso, fica quase impossível visualizar as forças democráticas e progressistas que vêm dos movimentos religiosos, e acontecem a partir da religião.

Do que me cabe, compartilho aqui três pontos cruciais do debate sobre religião, política e extremismo, cuja incidência nas disputas políticas que virão pela frente no Brasil, a partir deste ano eleitoral de 2024, considero dignos de serem observados.

O nacionalismo religioso. Estamos nós (analistas, defensores da democracia e do campo progressista) perdendo o trem da história sobre como isso tornou-se uma poderosa ideologia de extrema direita.

A dificuldade em distinguir o que é manifestação evangélica pura e simples, em um ato ou manifestação, de uma expressão nítida de fundamentalismo revestida de linguagem patriótica, amor ao país e à família brasileira, torna mais difícil entendermos a real dimensão e alcance do nosso desafio.

Seja no 8 de janeiro, seja na micareta bolsonarista na Paulista de fevereiro, enquanto diversas análises se debruçavam sobre a participação dos "evangélicos neopentecostais", o nacionalismo religioso não foi identificado, nem citado, como base de mobilização e exibição do radicalismo de verde e amarelo.

Nos Estados Unidos, o nacionalismo cristão já é considerado a maior ameaça à democracia americana. Na índia, o nacionalismo hindu, tolerado (e até inflamado) pelo primeiro-ministro Narendra Modi, tornou-se o risco número 1 para a democracia indiana, e, principalmente, para as minorias religiosas, muçulmanas e cristãs no país.

O nacionalismo religioso no Brasil, forjado pela visão fundamentalista cristã e judaica, vai lutar por um país livre da "macumbaria" das religiões de matriz africana. Entre outras coisas, ele é o sustentáculo do racismo religioso, porque não há lugar para as religiões de matriz africana entre as que devem pautar esse nacionalismo.

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O Israel imaginário. Não é de hoje que pesquisadores voltados para a religião, incluindo pesquisadores judeus, denunciam o crescimento e a força ganha pela ideia do "Israel imaginário" na política brasileira após a eleição de Bolsonaro. Um fetiche sobre Israel como um país especial, privilegiado por Deus a despeito de qualquer coisa, e bíblico.

Um fetiche que, é verdade, sempre existiu. Antes, como um coadjuvante em atos e eventos entre muitos grupos conservadores cristãos, além da judaização de muitas igrejas evangélicas (a bandeira israelense sempre esteve ali). Agora, como uma ideologia protagonista, que articula alianças políticas e capaz de forjar redes de extrema-direita com incidência global.

Uma ideologia que funciona muito bem na base, porque Israel tem lugar cativo na fé das pessoas evangélicas de vida mais simples, que têm apreço pela Bíblia. Aqui, Israel segue sendo um país "santo" e com o qual o Deus bíblico tem uma relação especial. Para a maioria dessas pessoas, o Holocausto sequer consegue fixar uma imagem de genocídio de judeus, ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial.

Todo sofrimento do povo judeu, incluindo o Holocausto, é mediado pela imagem de um povo que foi perseguido e sujeito à escravidão no Egito, sofreu diversas invasões de inimigos poderosos, e o Deus "de Abraão, Isaac e Jacó" os libertou e os fizeram uma nação forte e poderosa. Uma compreensão quase ingênua sobre um Israel que nada tem a ver com o estado governado por Netanyahu.

É uma ideologia que funciona muito também no topo, porque é uma linguagem poderosa que sustenta o lobby fundamentalista cristão (católico e evangélico) de um projeto de poder. Um lobby que se vale abusivamente da compreensão quase ingênua do povo crente sobre Israel. Basta lembrar a excitação do senador Magno Malta ao afirmar aos gritos que "nós amamos Israel", no ato da Paulista.

O mesmo Israel idealizado por forças criminosas no Rio de Janeiro, que estão pensando muito mais num "estado militar" que tem "Deus ao seu lado" do que num pertencimento religioso evangélico propriamente.

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Lembrem da deputada Carla Zambelli, que na coletiva de apresentação do pedido de impeachment do presidente Lula feito pela extrema direita brasileira abriu sua fala com um versículo bíblico: "Abençoarei aos que te abençoares, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem". Nada mais do que um versículo que se refere à postura de Deus com relação aqueles que lidariam com Israel.

A religião como política. Precisamos falar sobre isso. Entender que a religião como política é uma ideologia eficiente que a extrema direita encontrou para turbinar sua capacidade de comunicação e mobilização. E isto não é mesma coisa que ter a política como religião ou uma relação religiosa com a política. É a religião como um ativador de engajamento radicalizado.

Uma religião fundamentalista e moralizante, alicerçada em ordem, disciplina, autoridade e "normalidade", opera como política, mesmo com as figuras de extrema direita não assumidamente religiosos. Ela é a alma de projetos como Escola Sem Partido, Homeschooling ou as escolas cívico militares. Está claro que o fundamentalismo religioso será a política de Nikolas Ferreira na Comissão de Educação, de Caroline de Toni na Comissão de Constituição e Justiça.

A força política de Bolsonaro pode mesmo estar se tornando cada vez mais irrelevante. Mas a força com a qual o bolsonarismo forjou a religião como política extremista ainda é potente e ameaçadora. O governo não pode continuar se orientado apenas sobre como Lula é ou não aprovado. Religião não é um elemento periférico. E "evangélicos" não é tudo sobre o papel da religião.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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