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Wálter Maierovitch

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Duas questões jurídicas estão em aberto no caso de vacinas falsas

Ex-presidente Jair Bolsonaro foi alvo de operação da PF  - Marco Bello/Reuters
Ex-presidente Jair Bolsonaro foi alvo de operação da PF Imagem: Marco Bello/Reuters

Colunista do UOL

04/05/2023 13h53

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O dinamarquês Hans Andersen, falecido em 1875, escreveu um conto que resiste ao passar dos séculos.

O contado saiu dos dormitórios infantis para se eternizar no cotidiano. É sempre recordado quando políticos são pegos em consumadas patifarias, como acabou de acontecer com o ex-presidente Jair Bolsonaro.

No conto do dinamarquês, coube a uma criança inocente alertar para aquilo que todos os súditos assistiam no desfile real — sem coragem de dizer estar o rei nu. A roupa nova do mitômano rei era falsa, imaginária. A operação de ontem da Polícia Federal deixou — e basta ter olhos de ver — Bolsonaro nu, desmoralizado. O Mito está nu.

Caso perguntado a um cidadão comum quem era beneficiado com a patifaria criminosa, a indecência quanto aos atestados falsos de vacinação da covid, a resposta seria Bolsonaro e os seus, tudo dito sem titubeios.

Com viagem marcada aos Estados Unidos, Bolsonaro e a sua trupe contavam, para burlar o mecanismo de defesa da saúde pública americana, com falsos atestados de vacinados contra a covid. Não seriam negacionistas sinceros como o tenista sérvio Novak Djokovic, barrado pela não vacinação em um torneio na Austrália.

A operação da Polícia Federal, em atuação como polícia judiciária, foi batizada abreviadamente de "Venire".

Parece haver sido a abreviatura feita pela autoridade policial em face do conhecido princípio jurídico "venire contra factum proprium". Aquele princípio a vedar comportamentos contraditórios. Num resumo, o negacionista Bolsonaro, buscou — contraditoriamente ao que alardeava —- uma prova falsa de que havia tomado doses da vacina de Pfizer contra a covid.

A referida operação da Polícia Federal revelou, pela instituição, a retomada à sua essência republicana. Não existe pessoa acima da lei, ou, acima de qualquer suspeita. Todos são iguais, e todo suspeito precisa ser investigado. Afinal, o Brasil é uma república.

Pelo jeito, voltamos a ter uma polícia de estado e não mais uma polícia de governo, com aparelhamento dos seus postos de comando, como aconteceu ao tempo de Bolsonaro presidente.

As buscas realizadas na operação Venire resultaram em comprovações de inclusão de dados falsos (dados fabricados, mentirosos, ideologicamente irreais) de vacinações contra a covid no sistema informatizado do Ministério da Saúde.

A respeito, existe prova provada, nascida, por acaso, de uma iniciativa da Controladoria Geral da União ao tempo do mandato presidencial de Bolsonaro. No popular, a CGU atirou no que viu e acertou no que não viu: pensou tratar-se de armação contra Bolsonaro e mandou investigar. Descobriu que o insuspeito Bolsonaro era suspeitíssimo.

Na residência de Bolsonaro, foi apreendido o celular dele. Na operação Venire, com a prisão do bolsonarista Ailton Moraes Barros, constatou-se haver este preso, em gravação, sustentado saber quem era o autor dos assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Atenção: os crimes de falsificação de documento público e de falsidade ideológica (quando se insere declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita) são ilícitos graves. Pela lei são crimes contra a fé pública, ou melhor, delitos a atingem a confiança de iludidas pessoas.

A Polícia Federal não está obrigada a especificar quais os crimes em investigação.

Tal tarefa compete, na ação penal pública, ao Ministério Público. No entanto, bem agiu a Polícia Federal — até para demarcar os limites das investigações — em apontar os crimes supostamente cometidos por Bolsonaro e a sua trupe.

No elenco policial temos crimes contra a paz pública, como a formação de associação criminosa. Também crimes contra a fé pública, que são as falsificações. Ainda crimes contra a saúde pública. Para arrematar e referente à filha de Bolsonaro, restou relacionado o crime de corrupção de menores, tipificado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sobre o crime de corrupção de menores, vale recordar a existência de súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a assentar que independe, para a consumação do crime, ter a menor se corrompido.

Para não perder a contas, a Polícia Federal está a investigar cinco graves imputações.

Atenção: já existem elementos para Bolsonaro ser indiciado. Só está a se aguardar o seu interrogatório policial.

Até agora, a surpresa consistiu no fato de a Procuradoria Geral da República — onde o titular é Augusto Aras e a sua longa manus a vice-procuradora Lindôra Araújo — ter posicionado-se contra as buscas e apreensões na casa de Bolsonaro.

Lindôra, pelo noticiado pela imprensa, sustentou que as falsificações ocorreram à revelia do ex-presidente Bolsonaro. Enfim, o parecer da vice-procuradora Lindôra é uma peça de defesa de Bolsonaro.

O ex-presidente Bolsonaro — em manifestações fora do inquérito — afirmou que irá silenciar até conhecer toda a apuração. Bolsonaro ressaltou não ter cometido crime algum. Não haver participado ou pedido nada. Que sempre anunciou nunca ter tomado a vacina contra a covid.

Com essa sua fala, Bolsonaro jogou ao mar todo o seu antigo "staff" de subordinados. O tenente-coronel Mauro Cid, por exemplo, foi preso preventivamente e dado como coautor das inserções falsas na base de dados.

Atenção, de novo, Cid era um ajudante de cumprimento de ordens. Não dava ordens. Sua atribuição era ajudar no cumprimento das ordens dadas por Bolsonaro. Não tinha autoridade, atribuição, para dar ordens.

Bolsonaro — para se livrar da responsabilização criminal — jogou o seu núcleo duro de colaboradores diretos ao mar.

Duas questões jurídicas são relevantes. Estão em aberto.

  • Primeiro, não se mostra necessária a prisão preventiva de Bolsonaro, salvo se, pelo seu comportamento futuro do ex-presidente, começar a atentar contra a ordem pública.
  • Segundo, o STF precisará, urgentemente, reapreciar a competência da Corte e a de Moraes. Isso para dar as razões de continuar a abrigar o inquérito das chamadas milícias digitais. Em anexo a esse inquérito é que tramita a apuração iniciada pela operação Venire.

Num pano rápido — e à luz dos abandonados à própria sorte e em mar revolto —, Bolsonaro, ao tirar o corpo, demonstra, parodiando o episódio que envolveu Nelson Rodrigues e Otto Lara Rezende, não ser solidário em nenhuma situação, nem no câncer.