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Análise: protestos geraram aliança política histórica e improvável em Porto Alegre

Manifestante ajoelha diante de policiais durante o protesto de 24 de junho em Porto Alegre - Ricardo Duarte/Agência RBS
Manifestante ajoelha diante de policiais durante o protesto de 24 de junho em Porto Alegre Imagem: Ricardo Duarte/Agência RBS

Paulo Peres*

Especial para o UOL

03/07/2013 07h00

Ao contrário do que pode parecer, os “10 dias que abalaram” o Brasil neste mês de Julho não foram um raio que surgiu sob um céu azul. Quem acompanha as pesquisas realizadas há anos sobre a avaliação dos brasileiros acerca das instituições representativas, assim como o ativismo de diversas organizações societárias, provavelmente não deve ter se surpreendido com esse levante popular mais consistente, mas sim com o fato de ele ter demorado a acontecer.

Em realidade, essa espécie de “exaustão moral” do “demos” provocada pelo comportamento insatisfatório da classe política e, por extensão, dos partidos e dos poderes executivo, legislativo e judiciário não é exclusiva do caso brasileiro. Quase todos os países do mundo vêm enfrentando, já há um bom tempo, crescente declínio dos indicadores de confiança em relação às instituições representativas convencionais. Consequentemente, estudiosos e cidadãos vêm se tornando cada vez mais céticos com relação à efetividade das instituições representativas no que se refere ao processamento das demandas sociais sempre mais complexas do mundo contemporâneo. Obviamente, isso abre espaço para manifestações de insatisfação com os governos, em seus diversos níveis, e até mesmo de frustração com as instituições representativas – o que, aliás, num nível mais radical, pode resultar no temerário “que se vayan todos”.

Assim, não é surpreendente que no Brasil e em vários países surjam e se intensifiquem reivindicações de mudança na vida política. São cada vez mais frequentes as propostas que vão desde certas reformas específicas, visando a recolocar as instituições representativas no prumo [como o debate sobre a reforma política, colocado agora na agenda brasileira], até a defesa de desenhos institucionais que ampliem o escopo de atuação dos cidadãos em esferas decisórias situadas “para além das eleições”. Neste caso, ganham força os discursos favoráveis a alguma forma de democracia participativa ou deliberativa. Nesse contexto, inclusive, alguns grupos voltam a acalentar a possibilidade de uma ruptura mais radical com a estrutura econômica e política, em favor de projetos socialistas ou anarquistas. Além disso, é claro, esse descontentamento mais profundo também abre espaço para o afloramento de posições conservadoras ou mesmo reacionárias, desde as mais brandas até as autoritárias e, no limite, totalitárias.

Todas essas camadas de insatisfações e aspirações se sobrepuseram como forças motrizes da “onda” heterogênea, multifacetada e até, em parte, contraditória, de protestos que assolou várias cidades brasileiras nestas últimas duas semanas. Em certo ponto, até mesmos os manifestantes sentiram certo estranhamento ao se perceberem entre pessoas que empunhavam cartazes e bradavam palavras de ordem muito distantes de suas visões de mundo. Isso porque, a reboque da pauta inicial – transporte coletivo urbano público –, surgiram outras: algumas de esquerda, outras de direita; algumas universalistas, outras nacionalistas; algumas liberais; outras conservadoras; algumas partidárias, outras antipartidárias; algumas genéricas, outras pontuais; algumas nacionais, outras locais; e assim por diante.

Mapa dos protestos

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Aqui em Porto Alegre, um dos principais centros dessa eclosão popular, certamente houve questões locais que contribuíram para a fermentação do descontentamento generalizado, como a derrubada de árvores em alguns pontos da cidade para a realização de obras ligadas à Copa do Mundo. Essa é uma controvérsia que, desde o ano passado, mobilizou manifestantes contra a prefeitura, e resultou em confrontos entre ativistas e a Brigada Militar. Com a evolução dos protestos, pautas locais também ganharam destaque em alguns municípios do estado, como no caso de Santa Maria, onde os rumos tomados pela CPI destinada a investigar a responsabilidade do poder público no incêndio da boate Kiss levou à ocupação da Câmara de Vereadores por diversos manifestantes.

No entanto, na capital gaúcha, o principal tema de toda “onda” de protestos foi, de fato, esta questão cujo impacto é local, mas que se tornou nacional: a demanda pelo transporte público. Na perspectiva dos ativistas o transporte público, sem cobrança de tarifa, é a forma efetiva de operacionalização do direito de ir e vir da população, relacionando-se com seu projeto político maior que tem como objetivo a atuação do Estado nos serviços de interesse público.

Mas, nesse contexto, Porto Alegre trouxe uma especificidade que é importante destacar. Formou-se aqui uma aliança política até então improvável entre partidos e grupos políticos que, embora ideologicamente de esquerda, costumavam atritar uns com os outros em razão de divergências históricas em relação às suas táticas, estratégias e objetivos. Socialistas e anarquistas se aliaram para formar o principal articulador e protagonista dos movimentos de protestos na cidade, o Bloco de Lutas pelo Transporte Público. Essa aliança veio sendo articulada desde no ano passado e se concretizou em janeiro agora, reunindo, num mesmo bloco, PSOL, PSTU, PCB, alguns setores do PT, organizações anarquistas [como a FAG, Utopia e Luta, Moinho, Negro, Resistência Popular], grêmios estudantis, DCEs da UFRGS e PUC-RS, movimentos sociais e sindicatos [como a dissidência do Sindicato dos Rodoviários].

Essa aliança lhes garantiu a coesão necessária para dar volume e consistência ao movimento, que ganhou força desde março deste ano, quando as tarifas sofreram reajuste. O Bloco de Lutas promoveu manifestações que foram atraindo mais adeptos e levou vereadores do PSOL à proposição de uma ação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul visando à revogação do aumento. A liminar favorável às demandas do Bloco não foi contestada pela prefeitura, e já ali o movimento se considerou vitorioso. Porém, com os protestos de São Paulo e a ação da Polícia Militar em repressão desproporcional aos manifestantes, o Bloco de Lutas de Porto Alegre continuou a chamar as manifestações, que resultaram na grande “onda” de protestos que ainda não foi dissipada.

Ou seja, a grande novidade de Porto Alegre foi ter assistido à aliança entre socialistas e anarquistas num bloco político que conseguiu a adesão de movimentos sociais e sindicatos, e, depois, gerou toda a atmosfera de incentivo para que os mais diversos cidadãos também colocassem seu “bloco” na rua, com as mais variadas pautas e interesses.


Portanto, de forma alguma, os protestos emergiram de maneira espontânea, repentina e apartidária, como se deu a entender nos primeiros momentos de sua eclosão. Se houve a adesão de uma massa formidável de cidadãos até então alheios ou pouco atuantes em manifestações públicas contra os governos, isso se deveu a três fatores, sendo dois deles bastante anteriores. Em primeiro lugar, à antiga e importante mobilização de partidos e grupos societários em defesa do “transporte público com tarifa zero”. Em segundo lugar, à ação extremamente violenta e descontrolada da Polícia Militar da cidade de São Paulo, o que deu visibilidade às manifestações organizadas e incentivou a massiva adesão aos protestos. Em terceiro lugar: à crescente insatisfação da população com os políticos e algumas políticas públicas.

* Paulo Peres é professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS

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