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Qual a relação entre acesso a armas, massacre de Suzano e violência urbana?

A legislação para venda e posse de armas varia muito de país para país - Getty Images
A legislação para venda e posse de armas varia muito de país para país Imagem: Getty Images

Beatriz Montesanti

Do UOL, em São Paulo

20/03/2019 04h00

O debate sobre a facilitação do acesso a armas acontece neste momento no Brasil, nos Estados Unidos, na Nova Zelândia. Todos esses países passaram recentemente por ataques de ódio realizados com armas de fogo, que culminaram na morte de dezenas de pessoas.

O UOL ouviu argumentos de representantes dos dois pontos de vista para entender como eles veem o que está por trás de ataques como o massacre de Suzano e o que poderia ser feito para evitá-los.

"Enquanto pensarmos no homicídio cometido com o uso de arma de fogo como sendo culpa da existência ou disponibilidade da arma, continuaremos enxugando gelo", diz Bene Barbosa, coautor de "Mentiram para mim sobre o Desarmamento" (ed. Vide, 2015) e presidente do movimento Viva Brasil, organização sem fins lucrativos contrária ao Estatuto do Desarmamento em vigor no país.

"A arma é um instrumento eficiente para ataque, mas péssimo para a defesa", contra-argumenta Silvia Ramos, especialista em segurança pública e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, vinculado à Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro.

Leia os argumentos de cada um sobre a legislação para armas no Brasil:

Bene Barbosa, autor de ?Mentiram para mim sobre o desarmamento? e presidente do movimento Viva Brasil - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bene Barbosa, autor de "Mentiram para mim sobre o desarmamento" e presidente do movimento Viva Brasil
Imagem: Arquivo pessoal

Ao que você atribui ataques como o de Suzano?
Bene Barbosa - Obviamente algo muito ruim está acontecendo. Esse tipo de ataque, ou seja, alguém que aleatoriamente sai matando pessoas, é relativamente recente e teve seu primeiro registro em 1949*, nos EUA. Aparentemente vem se tornando mais frequente. Culpar o acesso às armas acaba sendo a primeira opção de muitos, porém há de se considerar que as armas de fogo, em sua versão moderna, estão disponíveis muito anteriormente ao primeiro registro de uma ocorrência assim, o que me leva a obviedade de que o problema é outro, muito mais profundo e, portanto, muito mais difícil de evitar exatamente pela sua imprevisibilidade e complexidade de fatores e variáveis.

* Nota da redação: (Há controversas sobre qual foi o primeiro ataque a tiros em massa dos Estados Unidos. Alguns artigos citam ataques ainda anteriores, no século 19.)

Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, especialista em segurança pública - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, especialista em segurança pública
Imagem: Arquivo pessoal
Silvia Ramos - A despeito de sua desproporção e falta de sentido, a tragédia não deveria nos afastar do reconhecimento de que vivemos numa das sociedades mais violentas do mundo, com mais de 60 mil mortes intencionais a cada ano, sendo que dois terços desse massacre são executados diariamente, em geral por motivos triviais, por armas de fogo espalhadas quase que livremente pelas periferias e bairros populares do Brasil inteiro. São mortes inúteis e em grande parte evitáveis, se tivéssemos políticas focadas na redução de circulação de armas de fogo em mãos de jovens que estão dentro ou na fronteira de dinâmicas ligadas à vida no crime.

Além disso, agentes de forças de segurança autorizados a portar armas de fogo frequentemente fazem uso indiscriminado ou propriamente criminal desses equipamentos. Hoje - porque as autoridades em cada estado omitem os dados - temos dificuldade de estimar o número de mortes causadas por esses agentes, tanto por excesso do uso da força em serviço como por envolvimento em rixas e disputas, pelo segundo emprego ou diretamente em grupos clandestinos de extermínio ou milícias.

Como evitar esse tipo de violência?
Silvia Ramos - O que mais preocupa em casos como o de Suzano é a dificuldade em prevenir que eventos semelhantes voltem a ocorrer. No caso da escola de Realengo (11 alunos mortos em 2011), medidas de segurança efetivas foram tomadas. Mas casos em Goiás (2017) e Paraná (2018) mostram que somos vulneráveis a ataques suicidas executados por pessoas obcecadas por armas e por massacres. O caso das mesquitas na Nova Zelândia, mesmo num contexto cultural distinto, mostra que o objetivo é causar choque, produzir visibilidade global, comoção e indignação. Por isso deveríamos discutir também nossos procedimentos de publicação dos nomes, perfis e modo de operação dos assassinos. Eles buscam é exatamente esse status de celebridade - que pode influenciar novos ataques.

Em sua opinião, quem deveria poder portar armas no Brasil?
Bene Barbosa - Primeiramente é importante lembrar que o porte de arma e a autorização para se andar armado, ou seja, para se sair de casa levando uma arma pronta para uso. Não se deve confundir com a posse. Dito isto, sigo. Hoje temos uma política do "ninguém pode, exceto alguns". Quem são esses alguns? Entre os civis autorizados são muito poucos, coisa de dois mil e poucos agraciados em todo o Brasil que, como sabemos, tem uma população de mais de 200 milhões de habitantes. Não sem motivo, proporcionalmente, a região que concentra o maior número de portes emitidos é Brasília. Eu defendo que todos devem ter o direito ao porte, exceto alguns. Desde que tendo capacidade técnica, mental e inexistência de histórico criminal e/ou violento, todos deveriam ter o direto de escolha.

O Brasil lidera rankings de mortes por armas de fogo. Mais armas trazem mais mortes?
Bene Barbosa - O Brasil é o maior exemplo mundial de que políticas restritivas, proibições, campanhas de desarmamento não funcionam para redução do arsenal criminal e dos crimes violentos! Desde 2003, 90% das lojas que vendiam armas fecharam, 600 mil armas foram voluntariamente entregues**, milhares de armas são apreendidas anualmente pelas forças de segurança pública, a venda de armas despencou e qual foi o resultado positivo real? Nenhum! Enquanto pensarmos no homicídio cometido com o uso de arma de fogo sendo culpa da existência ou disponibilidade da arma, continuaremos enxugando gelo.

Nenhum estudo comprova que a posse legal de armas está associada a mortes no interior de lares. No máximo mostra alguma correlação bastante forçada, coisa que é absolutamente diferente de causalidade. Em São Paulo, por exemplo, de acordo com o levantamento feito pelo Ministério Púbico, 83% dos assassinatos de mulheres ocorrem sem o uso de armas de fogo. Facas, porretes, panelas, esganaduras, socos e pontapés são os "instrumentos" mais comuns. O que devemos fazer? Proibir esses objetos dentro dos lares e amputar pernas e braços? Acredito que não... Certeza de punição dura e rápida, no caso dos homicídios, é o melhor que se pode fazer.

**Nota da redação: Desde que a campanha do desarmamento entrou em vigor, em 2004, mais de 700 mil armas foram entregues. Em contrapartida, mais de 800 mil foram vendidas.

Silvia Ramos - Todas as evidências indicam que potencialmente sim. E quanto mais perto elas estão (porte), mas sua presença aumenta a chance de letalidade. No caso brasileiro isso é evidente. A arma é um instrumento eficiente para ataque, mas um péssimo instrumento para a defesa.

Um caso eloquente sobre isso foi verificado no Rio dentro da própria polícia. Em 2017 tivemos mais de cem mortes de policiais, sendo mais de 70% fora de serviço. Boa parte dessas mortes referia-se a dinâmicas de policiais no percurso casa-trabalho, reagindo a tentativas de assaltos de seus carros ou motos. A Polícia Militar identificou os percursos mais perigosos e treinou os policiais a não usarem a arma em caso de assalto. Aumentou o policiamento em horários e locais de maior frequência, num programa chamado Percurso Seguro, e em menos de um ano as mortes de policiais militares caíram 43%. A ordem é: não atire em caso de assalto.

9.dez.2004 - Cerimônia de destruição de cerca de 10 mil armas de fogo recolhidas pela Campanha do Desarmamento, realizada no Memorial Juscelino Kubitschek, em Brasília - Sérgio Lima/Folhapress - 9.dez.2004 - Sérgio Lima/Folhapress - 9.dez.2004
9.dez.2004 - Cerimônia de destruição de cerca de 10 mil armas de fogo recolhidas pela Campanha do Desarmamento
Imagem: Sérgio Lima/Folhapress - 9.dez.2004

Segurança é dever exclusivamente do estado?
Bene Barbosa - O Brasil tem 1,2 milhão de seguranças privados registrados e deve ter mais ou menos isso de seguranças informais, incluindo milhares de policiais que em suas horas de folga precisam melhorar os seus ganhos de forma honesta. Como é possível afirmar então que segurança é um dever exclusivo do Estado se o próprio Estado autoriza a segurança privada como complemento?

A verdade é que há um péssimo entendimento sobre Segurança Pública no Brasil. A confusão acontece quando por Segurança Pública se entende a proteção individual - de cada cidadão - que aqui se encontra. Oras, em nenhum lugar do mundo a Segurança Pública é apresentada, prometida ou promovida assim. Se fosse isso, cada crime que ocorresse o Estado deveria ser responsabilizado diretamente e isso não acontece. Basta ver os julgados onde vítimas de criminosos pediram ressarcimentos ao Estado pelas falhas na obrigação de proteger. Todos, sem exceção, perderam.

Silvia Ramos - Sabemos que armamentismo não tem nada a ver com segurança. Política de segurança é necessariamente política de redução de homicídios e portanto política de controle de circulação de armas e munições. Flexibilização do desarmamento é agenda política, eleitoral, industrial e ideológica. É um pacote de adesão ao autoritarismo e em geral à extrema direita, que inclui agendas ligadas à moral, à família, a retrocessos nos campos dos costumes e à venda e posse de armas. Mas apenas para aqueles que se autoconsideram "bons". Porque paradoxalmente é exatamente para esses que defendem flexibilizar os freios aos armamentos que "bandidos devem morrer" (mas em geral bandidos estão armados e vão se beneficiar com a flexibilização).

Defensores da liberalização das armas usam como argumento, principalmente, a questão do direito e das liberdades individuais. Como você vê essa questão?
Bene Barbosa - Vejamos a Constituição norte-americana. Em sua primeira emenda temos a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de religião, a liberdade de associação para fins pacíficos e de oposição ao governo. Tudo isso é garantido desde que haja um governo democrático instituído que mantenha em pleno funcionamento as instituições republicanas funcionando perfeitamente. Mas quanto eficiente seria essa emenda perante um governo ditatorial? Nada eficiente e é exatamente aqui que o os fundadores daquele país incluíram na Constituição a conhecida Segunda Emenda que garante a posse e o uso de armas por todos os americanos com o claro objetivo de, em última e derradeira instância, fazer valer a primeira emenda. Em resumo: a liberdade

Silvia Ramos - Há uma filosofia pró-armas muito desenvolvida em alguns países do norte, especialmente EUA e outros países com grandes extensões rurais e áreas de caça. Com o crescimento populacional, esses princípios conceituais (posse de armas como "direito") passaram a ser imensamente afetadas por lobbies das indústrias dar armas, tipo NRA (Associação Nacional de Rifles) e armas passaram a ser adquiridas e cultuadas com pouca relação com o direito à defesa e grande relação com uma indústria que desenvolve produtos que fascinam os consumidores por seu poder letal descomunal.

No caso brasileiro, nossa equação é simples. Temos 64 mil homicídios por ano e uma taxa de 30 homicídios por 100 mil habitantes, uma das dez maiores do mundo. No país, essa taxa não se distribui de forma homogênea. Os senhores de terras, os ricos, poderosos, os jagunços e capatazes, donos de indústrias, bancos... sempre estiveram armados e nunca foram questionados. O estatuto do desarmamento, preocupado com a proliferação de armas - especialmente armas curtas circulando nas mãos de jovens de periferias - propôs um sistema de freios. E isso produziu a criação desse setor folclórico, os armamentistas, que se organizam em MBLs e diversos outros grupos, muito agressivos, alguns que se parecem com seitas obcecadas.