Com câmeras, letalidade policial cai 32% em SP; queda é maior entre brancos
As mortes em decorrência de intervenção policial caíram 32% entre 2020 e 2021, ano em que policiais militares começaram a usar câmeras acopladas aos uniformes. Foram 705 mortes em 2020, contra 480 no ano passado, segundo relatório anual da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, ao qual o UOL obteve acesso com exclusividade.
A queda já havia sido registrada nos dados da própria SSP (Secretaria Segurança Pública) em janeiro deste ano. Mas os dados da Ouvidoria trazem um componente extra. O recorte étnico mostra que uma redução mais acentuada entre pessoas brancas (52%) do que entre negras (31%) — a soma de pretos e pardos, acordo com os critérios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Para o ouvidor das polícias, Elizeu Soares Lopes, os dados indicam o racismo estrutural já que, mesmo para uma política pública bem-sucedida, em sua avaliação, a população negra sente menos os benefícios.
"Nós, os negros, ainda somos as principais vítimas de letalidade policial. A maior queda de mortes entre brancos revela o racismo estrutural. Os locais de maior violência ainda são aqueles em que vivem a população negra. Se é verdade que a violência está nas periferias, precisamos de uma polícia mais qualificada e especializada lá", disse.
"Quem mais sofre com crimes contra propriedade é o pobre. Mas, nos lugares com mais crime, há menor aparato policial. Ou seja, os lugares mais pobres são menos atendidos pela inteligência policial", complementou o ouvidor.
Em nota, a SSP disse que as mortes decorrentes de intervenção policial têm registrado "retrações expressivas em todos os grupos étnicos, faixas etárias e gêneros estudados". "Ou seja, independentemente de idade, cor ou orientação sexual, foram 379 vidas preservadas [entre 2019 e 2021]".
O texto diz que "a SSP reforça, ainda, que todos os indicadores são avaliados permanentemente com o objetivo de definir procedimentos e estratégias de ação que correspondam à missão das forças policiais de São Paulo de combater o crime, preservar vidas e garantir a segurança de todas as pessoas no estado".
Câmera na farda
Os dados da Ouvidoria apontam uma queda das mortes decorrentes de intervenção policial desde 2019, quando os números começaram a ser computados pela gestão. Naquele ano, policiais mataram 859 pessoas.
Já a SSP aponta que o total de pessoas mortas pelas polícias Civil e Militar, em serviço e de folga, caiu 30% em 2021. Foram 814 vítimas em 2020, contra 570 vítimas no ano passado. O registro de 2021 é o menor desde 2013, quando houve 369 vítimas, de acordo com levantamento feito pela reportagem.
Diferentemente da SSP, a Ouvidoria elabora um perfil das vítimas por idade, sexo e cor de pele. Segundo o órgão, em 2021, a grande maioria dos mortos foram homens (100%), pardos (49,7%) com idade entre 18 e 29 anos (39,58%).
As câmeras nos uniformes de policiais militares são apontadas como uma das estratégias responsáveis pela melhora nos indicadores. Os batalhões que primeiro passaram a botar em prática o programa "Olho Vivo", com as filmadoras nas fardas, viram as mortes cometidas por seus agentes despencarem 87% no semestre seguinte à implantação da medida.
Lopes ressaltou a importância da Comissão de Mitigação e Não Conformidade, criada pelo próprio comando para incentivar a depuração de ações da polícia As imagens das câmeras são usadas para apurar não só situações irregulares como também para aprimorar a função do dia a dia.
Funciona assim: em um batalhão, o responsável pela tropa escolhe aleatoriamente uma certa quantidade de ocorrências e analisa a ação dos policiais envolvidos. Esse uso é encarado na tropa como um fator democratizante, pois a política policial passou a incorporar a visão dos estratos médios, ou seja, capitães e tenentes, e não somente do comando-geral e regional.
Ao UOL, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, general João Camilo Pires de Campos, disse que a câmera não incomoda o policial que age corretamente.
A ferramenta voltou aos holofotes da imprensa em tom de campanha eleitoral depois que o ex-ministro da Infraestrutura e pré-candidato ao governo de São Paulo aliado de Jair Bolsonaro (PL), Tarcísio de Freitas (Republicanos), anunciou que iria acabar com a medida. A própria PM paulista rebateu o ex-ministro.
'Novo paradigma'
Elizeu Soares Lopes atribui a queda da letalidade também ao uso de armas não letais, como tasers e balas de borracha. O ouvidor aponta ainda uma mudança cultural promovida pelo coronel Fernando Alencar Medeiros, comandante da polícia militar do Estado de São Paulo.
Medeiros é descrito como um comandante técnico e defensor dos direitos humanos. O coronel, que evita aparições públicas e entrevistas à imprensa, é doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, e foi instrutor de Direitos Humanos para Forças de Segurança na América Latina no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha).
"Há um novo paradigma, que é uma polícia mais técnica e agindo dentro do protocolo. Existiu em São Paulo uma vontade política de enfrentar a letalidade policial. E as ferramentas tecnológicas, como as câmeras, são exemplo disso. Ela preserva e dá transparência tanto ao cidadão quanto ao policial que trabalha direito", afirmou o ouvidor das Polícias.
Escolha política
Os números também acompanham uma mudança de discurso do ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB) ao longo de seu mandato. Hoje pré-candidato à Presidência pelo PSDB, Doria foi eleito governador de São Paulo propagandeando o slogan "BolsoDoria", relacionando sua candidatura ao presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Ele divulgou que, durante sua gestão, a polícia iria "atirar para matar".
No dia em que foi eleito, prometeu "os melhores advogados" aos policiais que matam no estado. Também elogiou uma ação da polícia com 11 suspeitos mortos e afirmou que a redução da letalidade policial seria algo que poderia acontecer, mas sem obrigatoriedade.
Nesse sentido, suas promessas refletiram nos dados. A polícia de São Paulo nunca havia matado tanto num primeiro semestre quanto em 2020, sob a gestão João Doria. Os dados da SSP apontam que as polícias Civil e Militar mataram, juntas, 514 pessoas em supostos tiroteios, durante o serviço e também durante a folga, de janeiro a junho — o maior número da série histórica do governo paulista, que iniciou em 2001. No mesmo período, 28 policiais foram assassinados, mesmo índice registrado em 2018.
Pressionado pelos índices e distante de Bolsonaro, Doria, então, começou a alterar seu discurso comentando a letalidade como um problema a ser resolvido. Ele chegou a anunciar um novo programa para retreinar os policiais de São Paulo com o objetivo de diminuir casos de violência policial. Como já opinou em algumas oportunidades, na opinião do governador, o estado "não tem comprometimento com o erro" e indica o afastamento imediato daqueles que afirma considerar "maus policiais"
A reportagem procurou a SSP e, caso um posicionamento seja enviado, a matéria será atualizada.
Impasse na Ouvidoria
Lopes deveria ter cedido lugar a um novo ouvidor em fevereiro. Mas a eleição da lista tríplice formulada pelo Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) foi suspensa pela Secretaria de Justiça e Cidadania e está paralisada desde novembro por problemas na apuração.
Com o impasse, Lopes permanece no cargo até a resolução do imbróglio. "Enquanto não tiver outro ouvidor, eu fico na Ouvidoria. Está na lei. Já lançar o relatório é minha obrigação. Não me sinto confortável em entrar nesse debate, porque, de qualquer forma, entro como interessado", concluiu o ouvidor.
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