58 dias, 56 mortos: 6 casos marcam ação mais letal da PM-SP desde Carandiru
Uma mãe de seis crianças, duas pessoas com deficiência e trabalhadores estão entre os 56 mortos na Baixada Santista desde o dia 3 de fevereiro, durante a operação Verão, a mais letal da Polícia Militar de São Paulo desde o massacre do Carandiru, em 1992.
Também conhecida como a segunda fase da operação Escudo, a operação Verão começou em dezembro e intensificou-se em fevereiro, depois que um segundo soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) morreu. Ambas as operações mataram juntas ao menos 84 pessoas até 1º de abril, quando a última foi encerrada.
O UOL conseguiu informações detalhadas sobre a morte de seis das vítimas, a partir de casos reportados pela imprensa e por duas versões do "Relatório de Monitoramento de Violação de Direitos Humanos na Baixada Santista durante a segunda fase da Operação Escudo", feito em conjunto pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo e 12 organizações da sociedade civil e de defesa dos direitos humanos, que estiveram nas regiões das mortes para ouvirem testemunhas, familiares das vítimas e autoridades policiais envolvidas na ação.
Cabeleireira, mãe de seis
Edneia Fernandes Silva foi baleada na cabeça enquanto conversava com uma amiga, sentada no banco de uma praça em Santos. Era por volta de 18h de 27 de março e acontecia uma ação da PM.
Ela tinha 31 anos, era cabeleireira e tinha seis filhos. Sonhava em estudar enfermagem e pensava em mudar da região, relatou ao UOL o viúvo e pai das crianças, Junior Manuel.
Uma mãe responsável e dedicada, que estava correndo atrás de terminar os estudos no EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Faltava pouca coisa para terminar e começar uma nova vida, um sonho, que era fazer enfermagem.
Versão da polícia: houve uma troca de tiros entre policiais e dois homens que estavam em uma moto no local em que Edneia foi baleada. Eles teriam passado em alta velocidade, ignorado a ordem de parada e atirado cinco vezes contra os polícias, que revidaram. Nota da SSP diz ainda que conseguiram fugir, e a moto foi apreendida.
Versão da testemunha: a amiga de Edneia, que não quis se identificar, afirmou ao jornal O Estado de S.Paulo que houve um único tiro, logo após três motos da PM passarem. Ela disse que correu ao ouvir o som, mas a cabeleireira não fez o mesmo. Logo em seguida, viu que ela estava caída sobre a mesa em frente ao banco da praça em que conversavam.
Jovem deficiente visual e amigo
Davi Gonçalves Júnior e Hildebrando Simão Neto eram amigos e foram mortos dentro de casa por policiais do 1º Batalhão de Choque da Rota. Davi, 20, visitava Hildebrando, 24, na comunidade em São Vicente na hora do assassinato, em 7 de fevereiro. Ambos eram jovens negros e foram levados pelo Samu ao hospital, onde morreram.
Davi era entregador em uma loja de colchões e trabalhava desde os 13 anos. Ele perdeu o pai aos 18 e tinha o nome da mãe tatuado no peito, segundo o documento — o relatório não traz o nome das vítimas, mas a Ponte Jornalismo conseguiu identificar os dois amigos.
Pai de duas crianças, de 2 e 4 anos, Hildebrando era deficiente visual. Sofria de uma doença degenerativa chamada "ceratocone bilateral avançado" desde 2016, por isso era cego total de um olho e sofria de baixa visão no outro, conforme laudos médicos apresentados pela família.
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Quero receber[Hildebrando] estava deitado na cama jogando no celular, no momento em que a mãe, a irmã e o sobrinho de 2 anos da vítima estavam na sala assistindo TV e tomando café. Policiais da Rota invadiram a residência sem identificação ou uso de câmera corporal, com fuzis apontados para as mulheres e a criança na sala. Eles se dirigiram ao cômodo onde os jovens estavam, um "puxadinho" ainda em construção, local em que executaram ambos.
Trecho do relatório da Ouvidoria
Versão da polícia: diz que agentes invadiram o local após uma denúncia de tráfico de drogas.
Versão da família: diz que Hildebrando tinha deficiência visual grave, que "afetava a execução de suas atividades diárias" e o impossibilitaria de oferecer resistência violenta à abordagem policial. Relata ainda que ele pode ter sido confundido com o namorado de sua ex-mulher e mãe de seus filhos — o homem, suspeito de assassinar um soldado da Rota no dia 2 de fevereiro, em São Vicente, foi preso uma semana depois, em Uberlândia (MG).
Homem deficiente de muletas e vizinho
Leonel Santos foi atingido por disparos de fuzil feitos por policiais do 4º Batalhão de Choque do COE (Comando de Operações Especiais). A morte aconteceu em 9 de fevereiro, durante operação no Morro do São Bento, em Santos, e foi registrada no primeiro relatório da Ouvidoria.
Ele conversava com outro homem na comunidade, Jefferson Ramos Miranda, quando policiais saíram de surpresa de uma área de mata. Os dois foram executados, disseram testemunhas.
Imagens de moradora o mostram sentado junto das muletas antes de morrer. Após os tiros, os policiais isolaram o local e proibiram a aproximação de moradores e familiares dos dois, que não puderam ver as marcas de projéteis nos corpos antes da liberação para velório, segundo os relatos.
Os corpos de ambos os homens foram colocados um sobre o outro, formando uma cruz, e ficaram no local por cerca de duas horas, ainda vivos e agonizando, antes de serem removidos por uma ambulância para a Santa Casa de Santos, onde o óbito foi constatado.
Trecho do relatório da Ouvidoria
Versão da polícia: diz que ambos estavam armados e reagiram à abordagem.
Versão da família e vizinhos: dizem que os dois foram executados e não reagiram. Leonel era deficiente, usava muletas e não conseguiria atirar andando. A esposa dele possui laudos médicos que atestam as dificuldades físicas do marido, então beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para pessoas com deficiência.
Ajudante de pedreiro
Alex Macedo Paiva era ajudante de pedreiro e teria sido morto dentro de casa por policiais do Choque. Ele tinha 30 anos e morava na comunidade do Saboó, em Santos, diz o relatório da Ouvidoria. O crime foi em 20 de fevereiro.
Vídeo divulgado pelo UOL mostra rastro de sangue saindo pela fresta da porta enquanto 3 policiais aguardam. Uma mulher pergunta a um policial: "Tem que lavar a casa é?". De costas para o imóvel e de frente para uma viatura, um dos agentes faz sinal de positivo com a cabeça, enquanto o sangue escorre próximo aos seus pés. Cássio Thyone Rosa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e perito criminal aposentado, avaliou as imagens e encontrou indícios de fraude processual na operação.
A esposa de Alex disse que foi impedida de entrar na casa, mas chegou a ver os PMs lá dentro. Em depoimento à Ouvidoria, ela disse que perguntou onde estaria o marido, e o policial respondeu que ele estava bem, questionando se a vítima teria alguma dívida.
Vizinhos relataram que os policiais teriam chegado bem antes e ligado sirene e giroflex da viatura para abafar os sons de tiros. Familiares e moradores acreditam que Alex também foi torturado, mas foram impedidos de ver o corpo. O reconhecimento foi por foto.
Versão da polícia: diz, em boletim de ocorrência, que o motorista da viatura do batalhão ouviu tiros em viela e foi em direção ao som. Lá, outra equipe policial informou uma tentativa de abordagem a Alex, que teria fugido para casa, onde os policiais dizem ter entrado pois estava "com a porta aberta". Na entrada, "foram recebidos a tiros por aquele mesmo indivíduo e revidaram a injusta agressão".
Versão de testemunhas: moradores e vizinhos dizem que a vítima estava dentro de casa, com a porta fechada. Segundo a viúva de Alex, ele era dependente químico de cocaína e álcool, mas não atuava no tráfico.
Governador responde a ação mais violenta de SP: 'Tô nem aí'
Podem ir "na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí", disse o governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), em 8 de março, ao comentar a ação das organizações civis que denunciaram os abusos das forças policiais, como nos casos citados, e em outros episódios de ilegalidades apurados pelo UOL.
A alta letalidade das duas operações é apontada como resposta à morte de três PMs, tanto pela Ouvidoria quanto por especialistas em segurança pública. Foram eles:
- Patrick Bastos Reis, da Rota.
- Samuel Wesley Cosmo, da Rota.
- Marcelo Augusto da Silva, do Batalhão de Ações Especiais de Polícia.
A SSP informou que a Operação Verão terminou com 1.055 pessoas detidas, entre elas 434 procurados pela Justiça. Foram apreendidas 2,5 toneladas de drogas, além de 118 armas ilegais, incluindo fuzis de uso restrito.
O governo paulista afirmou que as mortes aconteceram em confronto e são resultado da reação violenta de criminosos ao trabalho policial. Não houve, no entanto, PMs feridos nas ações. "Todos os casos são rigorosamente investigados pela Polícia Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário", disse em nota.
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