No caos do abrigo, venezuelanos sonham com vida melhor nas capitais do Brasil
Na área externa do abrigo Tancredo Neves, em Boa Vista, em meio à desordem, à sujeira e entre as barracas superlotadas, Sandy Sojo, 36, tentava arrumar o pequeno espaço onde vive como se cuidasse de sua casa em Barcelona, no norte da Venezuela. A moradia improvisada em um antigo ginásio esportivo está com os dias contados, já que ela e sua família estão entre os venezuelanos que aceitaram a proposta de interiorização feita pelo governo federal. Eles agora aguardam o embarque para São Paulo com grandes expectativas: é a chance de dar uma vida sem privações aos três filhos de três, seis e 13 anos.
"Aqui em Boa Vista não nos ofereceram oportunidades. Há pouca oportunidade de trabalho e há venezuelanos demais aqui. Queremos melhorar, conseguir um trabalho estável, em um lugar em que a gente possa criar e alimentar os nossos filhos e ajudar a nossa família na Venezuela. Porque na Venezuela hoje há muita fome", disse a professora ao UOL.
O ginásio foi declarado abrigo para os venezuelanos em 2017, quando o fluxo migratório explodiu e ocupou praças, parques e esquinas da tranquila cidade de 330.000 habitantes. O espaço deveria abrigar no máximo 180 pessoas, segundo a Acnur (Agência da ONU para os Refugiados). Mas as estimativas oficiais dizem que há mais de 700 refugiados ali.
A pequena tenda escorada no muro, feita com papelão, lona e madeira, está próxima do banheiro feminino improvisado em um contêiner --em volta, há muita água parada e um odor desagradável. Em seu barraco vivem cerca de 30 pessoas, todos parentes que vieram pouco a pouco nos últimos meses. Ela foi a primeira a vir ao Brasil, e comprou a passagem com a ajuda de toda a família. Com os trabalhos que conseguiu em Boa Vista, juntou dinheiro por um mês para trazer o marido e os filhos. Em três meses, toda a família conseguiu vir: irmãos, cunhadas, sobrinhos --um deles nasceu no Brasil há menos de uma semana.
Todos já foram vacinados contra sarampo e febre amarela. Agora, aguardam o embarque em avião da FAB. Quando souberam que a equipe de reportagem vivia em São Paulo, a situação se inverteu e o grupo passou a perguntar sobre o pouco que sabiam de São Paulo: "a cidade é muito grande?", "é verdade que as enchentes passam da altura dos joelhos?", "há mesmo mais vagas de emprego?", "faz muito frio ou o clima é quente como em Boa Vista?".
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Ainda não há detalhes de como os venezuelanos que passarão pelo processo de interiorização serão instalados em Manaus e em São Paulo. E apesar dos poucos detalhes que receberam, os que toparam a proposta do governo federal têm uma expectativa em comum: esperam conseguir emprego e deixar o abrigo Tancredo Neves, que hoje tem uma infraestrutura precária para atender a centenas de pessoas.
Com a intensa movimentação do abrigo, a própria Defesa Civil de Boa Vista tem dificuldades em acompanhar a quantidade de pessoas no local. Do lado de fora do ginásio, as barracas improvisadas disputam espaço com as roupas penduradas pelos varais. As pessoas buscam água no posto de gasolina que fica na frente do ginásio. O corredor do lado de fora da quadra é o local em que as atividades ilícitas normalmente ocorrem --no local há duas facções venezuelanas, que não se enfrentam e controlam o espaço. Há relatos de tráfico de drogas no local, prostituição e até casos de violência sexual.
"Vou para onde me mandarem"
Israel David, 38, mostra-se animado com a oportunidade de deixar o abrigo e recomeçar a vida fora de Roraima. Deixou Caracas sozinho há quatro meses e, sem chances de emprego, aceitou a proposta para recomeçar em outro Estado brasileiro --ele não tem preferência, desde que possa trabalhar, comer e ter uma vida mais segura. Estava feliz, já que há menos de uma semana conseguiu trazer sua mulher para o Brasil. "Trabalhei, juntei dinheiro, mandei a ela e agora minha mulher está comigo no abrigo há três dias", disse Israel.
Mestre de obras na Venezuela, está trabalhando como pedreiro em Boa Vista. Diz que também busca trabalho como mecânico, e está disposto a ter qualquer tipo de emprego. Segundo ele, está com a documentação completa e já tomou as vacinas para seguir viagem --ele ainda não sabe para onde vai. "Vou para onde me mandarem. Aqui já não tem emprego", diz. Ele agora corre para conseguir a documentação e cumprir as exigências de saúde para que sua mulher possa acompanhá-lo na viagem.
Os que aceitaram aguardam o tempo necessário para tomar todas as vacinas necessárias --a maior parte dos venezuelanos não têm carteira de vacinação, então todos do programa serão vacinados contra febre amarela e sarampo, e as duas vacinas não podem ser tomadas ao mesmo tempo. A vacina de sarampo exige uma espera de 30 dias, por exemplo.
Todo o processo de interiorização é apoiado pela Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). A agência trabalhou diretamente com os que aceitaram o deslocamento, realizando a coleta de informações e repassando para o governo federal. A Acnur deixa claro para os venezuelanos que, até o embarque, eles podem mudar de ideia sobre a mudança.
Mais de 530 pessoas estão na lista --350 delas irão para São Paulo, e 180 para Manaus, segundo o governo federal. Todos serão transportados em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira). A previsão é a de que as viagens comecem em abril --até lá, todos estarão devidamente imunizados e regularizados.
"Nós somos bons venezuelanos, trabalhadores, a 100%. Espero que nos ajudem em São Paulo, que não nos deixem sozinhos. Porque somos todos irmãos. Espero que nos recebam bem e nos deem a oportunidade de ajudar este país", diz Sandy, enquanto as filhas brincam ao seu redor.
A interiorização é, segundo fontes ouvidas pelo UOL, uma das alternativas encontrada para aliviar a superlotação no abrigo e também para abrir vagas para que os venezuelanos que ocupam as praças da cidade possam ser transferidos para estes espaços. Autoridades estudam ainda a abertura de um terceiro abrigo administrado pela prefeitura na cidade, visando a retirada dos venezuelanos em situação de rua --o outro abrigo da prefeitura é exclusivo para indígenas venezuelanos, onde cerca de 600 pessoas vivem atualmente.
Muitos tentam deixar o Estado por conta própria. Juntam dinheiro até conseguir comprar a passagem de ônibus para Manaus --que custa cerca de R$ 150. De lá, os que não conseguem comprar uma passagem aérea para o sudeste, o sul do país e até outros países como Argentina e Uruguai, acabam pegando o barco para Belém, no Pará. Muitos ficam em Manaus ou Belém, e alguns seguem até Brasília de ônibus.
Desconfiança
Mas não são todos que compartilham do entusiasmo de Israel e Sandy para deixar Roraima. Para muitos, sair de perto da Venezuela significa estar mais longe dos familiares deixados no país vizinho, e consequentemente torna-se mais complicado ajudá-los. Outros queixam-se da falta de detalhes ou até mesmo da falta de estrutura do programa proposto pelo governo brasileiro para viver em outros Estados.
Wilson Ortiz, 32, é um dos que afirma que aceitaria ser deslocado para outras regiões do Brasil se o programa envolvesse um processo de capacitação profissional e suporte para os migrantes. "Para as pessoas que querem ir para São Paulo, por exemplo, seria mais factível quando há garantias. Programas para dar uma preparação, educação, formação. Que façam um perfil dos interessados e vejam o status de cada um, se estão aptos para uma empresa".
Wilson era engenheiro químico na Venezuela. "Até agora não é possível aceitar o programa. No meu caso, por exemplo, tenho uma pequena empresa e gostaria muito de trazê-la para o Brasil. Sei que existem diferentes regulamentações, e isso me limita bastante", afirma. "No Brasil, gostaria de ser um comerciante, trazer o meu pequeno negócio, a minha experiência."
* Com imagens em vídeo de Paulo Camilo
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