Brasileira em Moçambique: "Fronteiras sempre foram fechadas para a África"
A pesquisadora brasileira Kathleen Angulo, 29, ficou frustrada ao saber que seu voo de Moçambique para o Brasil, marcado para 13 de dezembro, foi cancelado. O país africano foi um dos primeiros impactados pelas restrições internacionais por causa da variante ômicron do coronavírus. Assim, ficou bem mais difícil para ela e outros brasileiros planejarem as festas com a família neste fim de ano.
Após o registro da variante na África do Sul, no fim de novembro, o governo brasileiro fechou as fronteiras aéreas para seis países ao sul do continente para evitar a disseminação por aqui. Nesta semana, no entanto, foi divulgado que a ômicron já estava na Holanda previamente. A pesquisadora reclama de uma política de "dois pesos e duas medidas" em relação à África.
Kathleen se mudou para Moçambique em janeiro deste ano por uma oportunidade profissional da sua empresa. Ela pretendia viajar para o Brasil uma vez por ano e já tinha passagem comprada para ver a família no próximo dia 13. Com o anúncio do fechamento da fronteira aérea para África do Sul, Botsuana, Essuatíni, Lesoto, Namíbia e Zimbábue e recomendação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de "medidas restritivas" para Angola, Malawi, Moçambique e Zâmbia, ela teve o voo cancelado.
"Já não há mais companhias aéreas fazendo voos saindo de Moçambique [para o Brasil]. A única operadora ainda a oferecer voos é a Ethiopian Airlines, mas já não há mais passagens disponíveis", conta a pesquisadora.
Com a disseminação da ômicron, a África do Sul viu o número de casos explodirem, mas ainda não há aumento em internações ou mortes, até então —em especial entre a população vacinada. Ao norte, Moçambique ainda não sentiu o efeito da nova mutação.
Apesar do baixo índice de vacinação (apenas 12% da população imunizada e 20% com pelo menos uma dose), o país passa por uma situação de controle da pandemia. Foram menos de 2 mil mortos desde março de 2020, enquanto o Brasil ultrapassou 615 mil óbitos —o que representa 60 mortes por 100 mil habitantes por lá e 2.873 por aqui.
"Minha percepção é de que a situação está bastante controlada. Desde que cheguei aqui, em janeiro, não houve nenhum período de relaxamento total das medidas [de restrição]. Ainda há toque de recolher, horário limitado para comércio e horário restrito para venda de bebidas alcoólicas", conta Kathleen.
A vacinação, no entanto, segue um problema. A pesquisadora conta que os imunizantes são levados em grande parte por empresas privadas (foi como ela tomou), além das doações internacionais. Sem um sistema universal de saúde, o acesso da população é escasso.
"As vacinas são compradas por empresas privadas que querem vacinar seus funcionários, doadas por outros países ou trazidas por organizações internacionais, e esta restrição de voos já começa a impactar no abastecimento", relata a pesquisadora.
O grande entrave para uma maior cobertura vacinal é o abastecimento, pois [Moçambique] não tem como produzir suas próprias vacinas nem como comprá-las, sendo dependente de doações."
Kathleen Angulo, pesquisadora brasileira em Moçambique
Além disso, ela relata desconfiança por parte da população em relação ao tipo da vacina. No país, a maior quantidade de doses disponibilizadas até agora foi da AstraZeneca, por meio do consórcio internacional Covax Facility, e da estatal chinesa Sinopharm.
"Como as vacinas trazidas pra cá têm fabricantes diferentes das disponibilizadas nos países desenvolvidos, uma parte das pessoas acredita que as vacinas disponíveis fazem dos africanos cobaias, e também circulam muitas fake news de que a vacina é a 'marca da besta' ou que matará daqui dois anos", lamenta Kathleen
Segundo o Unicef, que integra o Covax Facility, o país deverá receber pelo menos 18 milhões de doses do consórcio internacional nos próximos meses. Além disso, nesta semana, o presidente chinês Xi Jinping também prometeu a doação de 1 bilhão de vacinas a todo o continente.
De costas para a África
O fechamento das fronteiras aéreas dos países ao sul da África por Brasil, Estados Unidos e Europa tem sido alvo de críticas internacionais por sua baixa eficácia e pela desproporcionalidade.
A África do Sul foi o primeiro país a identificar a variante e revelá-la para o mundo, mas hoje se sabe que ela havia sido identificada na Holanda pelo menos desde 19 de novembro e que já circula pela Europa. A Anvisa, no entanto, não recomendou fechamento de fronteiras ao continente.
As fronteiras do mundo sempre estiveram fechadas para a África, e esse bloqueio dá-se principalmente na mentalidade das pessoas. Deveríamos louvar a capacidade da África do Sul em detectar essa nova variante e anunciar para o mundo, e o caminho que as pessoas escolheram foi puní-los."
Kathleen Angulo, pesquisadora brasileira em Moçambique
"Enquanto a Europa tinha gente incendiando carro pelo direito de não tomar vacina, os países [africanos] pagam preços absurdos no mercado das vacinas. Tendo vivido aqui por esse tempo, lamento mesmo que essa mentalidade ainda persista. As pessoas, empresas e países perdem muito ao virarem as costas para um continente tão diverso e promissor", lamenta a pesquisadora.
Ao UOL, a Anvisa afirmou que a decisão sobre os dez países citados se deu "diante da evolução do cenário e do potencial impacto epidemiológico da nova variante" e que "permanece atenta e monitora a evolução do cenário epidemiológico mundial, a fim de que possa propor novas medidas restritivas de forma oportuna, caso seja necessário".
"No que se refere aos países da Europa, a Anvisa sugeriu que o Ministério da Saúde monitore a evolução do cenário epidemiológico, para análise e avaliação da necessidade futura da inclusão na lista de países com restrições de ingressos ao Brasil", diz a agência, que lembra já ter recomendado fechamento de fronteiras de Reino Unido e Índia, quando a delta surgiu.
Ajuda do Itamaraty
Agora, Kathaleen diz que tem buscado, junto de outros brasileiros, ajuda no Itamaraty para tentar voltar para o país neste fim de ano. Por enquanto, segundo ela, não teve sucesso.
"Eu tenho olhado o site da Embaixada brasileira diariamente e estou num grupo de Whatsapp com outros brasileiros que vão atualizando a situação, mas por enquanto o cenário é de incertezas", relata. Ela conta que a embaixada criou um formulário para os interessados preencherem, "mas sem a promessa de realizar voos de repatriação".
"Vejo que Portugal e Espanha já providenciaram de levar seus cidadãos de volta, mas a situação do Brasil ainda é uma incógnita", reclama Kathleen.
A reportagem também procurou o Itamaraty para saber como o órgão está acompanhando a questão e se há previsão de voo de repatriação, mas não teve resposta até o fechamento da matéria.
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