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Guerra da Rússia-Ucrânia

Notícias do conflito entre Rússia e Ucrânia


Conflito de informações é estratégia de Rússia e Ucrânia, dizem analistas

Ruben Berta

Do UOL, no Rio

06/03/2022 04h00

Na semana passada, o presidente Volodymyr Zelensky anunciou que iria condecorar com a ordem de heróis da Ucrânia 13 militares que teriam morrido na Ilha da Cobra, no mar Negro, durante um bombardeio russo. Um áudio divulgado pela imprensa europeia indicava que os soldados teriam xingado os adversários.

Dias depois, a própria Marinha da Ucrânia informou que os militares estavam "vivos e bem", enquanto o Ministério de Defesa da Rússia disse que todos se renderam voluntariamente.

Não foi a primeira divergência de dados desde o começo da guerra entre Rússia e Ucrânia. Segundo especialistas ouvidos pelo UOL, para além do front de batalha, o confronto de informações é parte fundamental da estratégia dos dois países. De lado a lado, as versões oficiais não necessariamente correspondem à realidade e servem como arma para enfraquecer o inimigo —o que dificulta um retrato preciso dos fatos.

"Por que é difícil achar informação precisa? Isso tem a ver com uma grande estratégia da guerra, pensada há muito tempo, aplicada há muito tempo", diz Tasso Franchi, professor da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), que dá aulas sobre estratégia e teoria da guerra no programa de pós-graduação em Ciências Militares.

Para ele, não é mais possível diferenciar a guerra de informações do campo de batalha. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, Franchi destaca que a disputa extrapola a área militar e avança, por exemplo, para narrativas nos campos histórico e econômico —a Ucrânia já fez parte da cortina de ferro, ligada à antiga União Soviética.

Você cria uma névoa, divulga informações erradas para diluir a certeza do inimigo e a capacidade dele de tomada de decisões."
Tasso Franchi, professor da Eceme

Na sexta-feira (4), Rússia e Ucrânia trocaram acusações sobre o incêndio na região da maior usina nuclear da Europa, localizada em Energodar, no sudoeste do território ucraniano. A Ucrânia afirma que o fogo começou após um bombardeio russo. A Rússia alega que ucranianos incendiaram o prédio.

'Discursos bem definidos'

Na última quarta-feira (2), Zelensky, afirmou, num vídeo divulgado pelo Telegram, que 6 mil soldados russos foram mortos desde o início da invasão russa no país, no dia 24 de fevereiro. No mesmo dia, o Ministério da Defesa russo divulgou o primeiro número desde o início da guerra: 498 mortes.

Ao comentar as diferentes versões apresentadas pelos países, dois especialistas ouvidos pelo UOL citaram uma frase dita há mais de um século pelo senador norte-americano Hiram Johnson (1866-1945): "Quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade".

Mapa Rússia invade a Ucrânia - 26.02.2022 - Arte UOL - Arte UOL
Imagem: Arte UOL

Instrutor da Eceme, o major de infantaria Walker Lopes Lima destacou que há discursos bem definidos no conflito atual. Do lado ucraniano, o mote é enaltecer atos de heroísmo de seu povo na resistência contra o avanço da Rússia em seu território.

Lima mencionou o caso que viralizou nas redes sociais há alguns dias, conhecido como o "Fantasma de Kiev", em fotos e vídeos mostravam um suposto piloto ucraniano que teria abatido seis aeronaves russas. Serviços de checagem, no entanto, identificaram que as imagens eram de um videogame.

Uma foto que seria do piloto, compartilhada agora pelo ex-presidente ucraniano Petro Poroshenko (2014-2019), já tinha sido divulgada há três anos pelo Ministério da Defesa do país.

"Essas informações têm o efeito de alterar o comportamento da população, de motivar a resistência", avalia o major.

Do lado russo, os esforços se concentraram principalmente em dar legitimidade à invasão, alegando a defesa da população, com acusações de genocídio e de nazifascismo por parte do inimigo.

Mas, ao dizer que a Ucrânia é comandada por um grupo de neonazistas, Putin ignorou, por exemplo, o fato de que o atual presidente do país, Volodymyr Zelensky, é judeu.

Ações internas na Rússia

Internamente, o Kremlin avança em ações de censura contra o que resta de mídia independente no país. O governo Putin sequer admite, por exemplo, que a expressão guerra seja usada para classificar o confronto contra a Ucrânia.

A BBC, rede britânica, suspendeu a operação na Rússia, depois que o acesso ao seu site foi restrito pelo governo. No anúncio, alegou também preocupação com a segurança de seus jornalistas.

Além de controle de sites, o acesso ao Facebook foi bloqueado, além de postagens no Twitter e demais redes sociais.

A Duma Estatal da Assembleia Federal da Rússia, órgão responsável pelo legislativo do país, aprovou por unanimidade na sexta a criação de um projeto de lei que prevê punições que podem ir até 15 anos de reclusão para pessoas que publicarem e disseminarem na internet o que for considerado notícia falsa envolvendo as forças armadas do país. Para entrar em vigor, o texto precisa ser ratificado pelo Conselho da Federação, equivalente ao Senado, e enviado ao presidente Vladimir Putin —mas os efeitos já são vistos.

Se dentro da Rússia ações como essas ainda podem surtir efeito —inclusive devido ao uso da força—, é consenso entre especialistas que Putin não conseguiu emplacar sua versão na grande maioria dos outros países, principalmente no Ocidente.

"No caso da Rússia, temos um país que, após o colapso da União Soviética, viveu anos de fragilidade militar. E, por conta disso, o governo tentou aprimorar outras maneiras de lutar, principalmente a chamada guerra híbrida, que usa muitos elementos de desinformação, que pode ir de perfis falsos nas redes sociais até conteúdos produzidos pela mídia estatal", diz Maurício Santoro, professor do departamento de relações internacionais da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

É algo que a Rússia fez em muitos momentos, talvez de forma mais conhecida na campanha presidencial americana de 2016, apoiando o [ex-presidente Donald] Trump. A diferença agora é que, mesmo com todos esses recursos de comunicação, eles estão perdendo essa batalha. Há uma rejeição muito forte à invasão da Ucrânia e as versões que a Rússia está tentando emplacar não estão dando certo."
Maurício Santoro, professor da Uerj

Tasso Franchi, da Eceme, destaca que, diferentemente do que ocorreu em outros conflitos recentes, agora há capacidade de ação em ambos os lados.

"Numa guerra, a primeira coisa que uma nação faz é moldar o ambiente. E isso é pensado. Um exemplo dessa construção narrativa que podemos lembrar é a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, sob a justificativa de destruição de reservas ocultas de armas químicas, o que não se confirmou", afirma. "Só que ali, do outro lado, não havia um país com capacidade de responder. Agora, temos os dois lados com poder de construção de narrativa e apoio de outros países."

Outro aspecto importante é que Rússia e Ucrânia já se enfrentam em disputas híbridas há anos —em 2014, a Rússia tomou a Crimeia, que fica ao sul da Ucrânia. Luca Belli, professor da FGV Direito Rio e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade, lembra que, desde então, a Ucrânia vem sofrendo com ataques cibernéticos. Com isso, segundo Belli, o país desenvolveu competências e consegue realizar contraofensivas.

"Em 2017, foi usado um software chamado NotPetya, atribuído aos russos, que paralisou 80% da economia da Ucrânia. Os monitores de radioatividade de Chernoby foram afetados e ficaram desligados por várias horas", exemplifica. "Em 2016, um ataque chamado de Black Energy derrubou boa parte do fornecimento de energia no país. Não estamos falando só de divulgação de desinformação."