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A agricultura é vilã ou vítima na crise hídrica?

Plantação de uvas da Embrapa, em imagem de novembro de 2014 - Viviane Zanella/Embrapa
Plantação de uvas da Embrapa, em imagem de novembro de 2014 Imagem: Viviane Zanella/Embrapa

Paula Adamo Idoeta

Da BBC Brasil em São Paulo

04/03/2015 16h38

Enquanto cidades como São Paulo apertam o cinto para não ficar sem água em meio a uma crise sem precedentes e fazem esforços para reduzir o consumo hídrico, o uso na agricultura entra em debate. O setor gasta mais água do que deveria ou seu consumo é justificado pela produção de alimentos?

Cerca de 72% da água captada no país vai para a produção agrícola, o que está em linha com a média de 70% no mundo, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas). Mas esse consumo envolve diversas variáveis e, segundo especialistas consultados pela BBC Brasil, ainda há desperdício significativo no setor e muito o que fazer para economizar água.

Os analistas concordam em uma coisa: o Brasil tem água o bastante para todos, mas precisa aprender a geri-la de forma mais eficiente e combater os desperdícios.

"Em locais onde falta água, podemos, no futuro, precisar optar por culturas agrícolas que consumam menos água. Isso faz parte de um planejamento maior. Mas o Brasil não pode passar por uma crise como a que temos agora, porque nós temos água", opina o pesquisador Lineu Rodrigues, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, ligada ao ministério da Agricultura).

Para Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da ONG SOS Mata Atlântica, a eficiência passa por criar uma relação mais "sustentável" entre o setor e os recursos hídricos. "Há setores que têm reduzido sua pegada hídrica. É preciso separar a agricultura que incorporou a sustentabilidade – muitas vezes porque depende disso para obter certificados internacionais que a permita exportar – da perversa, de muitas monoculturas (que exaurem os recursos do solo) e dos setores que usam muito veneno", opina.

Como é o consumo de água na agricultura?

Especialistas do setor agrícola alegam que, na área rural, o consumo de água em geral não compete com o uso pelas pessoas. Mas, para a SOS Mata Atlântica, muitas vezes o plantio concorre com o consumo humano, seja na captação ou em casos de poluição das fontes de água.

Segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), a cobrança pela captação da água na agricultura varia conforme o tamanho do uso (pequenos produtores rurais costumam ser isentos) e o local de onde é retirado: em algumas bacias hidrográficas, há isenção de custos para os agricultores, o que estimula desperdícios; em outras, paga-se pela autorização de captação (a chamada outorga) ou por litro captado.

Em São Paulo, segundo o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), seis bacias hidrográficas - de um total de 22 - cobram pela utilização dos recursos hídricos: Paraíba do Sul; Piracicaba/Capivari/Jundiaí; Sorocaba/Médio Tietê; Baixada Santista; Baixo Tietê e Alto Tietê.

Lineu Rodrigues, da Embrapa, diz que o uso da água na agricultura tem uma diferença significativa com relação ao uso humano e ao industrial: a qualidade dos resíduos. "A água que volta para o rio depois do consumo humano tem qualidade horrível, é esgoto. Na agricultura bem-feita, ela volta limpa. Nossa análise de poços no Cerrado mostra isso. É injusto não levar isso em conta", diz.

Mas Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, afirma que nem sempre é esse o caso: "Por causa dos defensivos agrícolas usados no Brasil, muitos deles proibidos no exterior, o produto final muitas vezes é uma água contaminada".

Há desperdícios? A agricultura está sendo forçada a economizar?

Não há, na ANA ou no governo brasileiro, estatísticas oficiais sobre a extensão do desperdício da água na agricultura. A SOS Mata Atlântica diz que as perdas podem chegar a 70%; Rodrigues, da Embrapa, vê perdas menores, de 15% a 20%, na região onde trabalha.

Tampouco há, segundo a ANA, metas oficiais para economizar água no setor agrícola, mas produtores que não cumpram medidas de eficiência ou gastem água além do previsto podem, em tese, perder a outorga para captar recursos hídricos. A própria agência, no entanto, aponta que, na prática, isso não ocorre com frequência.

Os cinco especialistas consultados pela BBC Brasil concordam que o setor pode otimizar o uso hídrico, aprimorando a retenção de águas nas fazendas ou evitando desperdícios na irrigação.

Para Nelson Ananias Junior, assessor da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), falta regulamentação ao processo de retenção de água em propriedades agrícolas, o que facilitaria o armazenamento de águas em épocas de seca.

"Podemos plantar na seca (no Brasil), porque temos sol e solo", diz. "O limite é a água. Se ela for mais bem distribuída, produzimos mais."

Ananias diz que os produtores são incentivados a economizar água para economizar dinheiro, já que, quanto mais água os agricultores gastam, maiores são seus custos de energia - o custo para bombear água das fontes às plantações fica na conta dos produtores. Ainda assim, para a SOS Mata Atlântica, isso não pesa tanto no bolso do produtor: "A água e a energia são muito baratas".

A CNA e a ANA anunciaram, em abril passado, um Acordo de Cooperação Técnica para mapear e aprimorar a gestão de recursos hídricos no país, capacitar produtores rurais e criar estratégias para agir em áreas de potenciais conflitos envolvendo o uso da agricultura irrigada, mas o acordo ainda não teve desdobramentos práticos.

A agricultura está sendo afetada pela falta d’água?

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Ananias, da CNA, explica que os produtores são diretamente impactados pela falta d’água porque a legislação brasileira determina que, em caso de seca, o uso prioritário é o humano, e não o agrícola.

Para Ribeiro, os mais prejudicados tendem a ser os produtores de pequeno porte. "Em Ibiúna (SP), por exemplo, pequenos agricultores de batata e hortaliça tinham toda sua documentação ambiental em dia, mas tiveram sua outorga suspensa (por causa da crise de abastecimento no estado)", diz a coordenadora da Rede das Águas da SOS Atlântica.

A irrigação é problema ou solução?

A irrigação ainda está presente em uma área relativamente pequena do total do plantio brasileiro, mas tende a crescer por ser bem mais eficiente e permitir que o produtor não dependa da chuva, explica Ivanildo Hespanhol, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica da Poli-USP.

Expandi-la, no entanto, significaria puxar mais água de fontes que, em alguns casos, podem competir com o uso humano.

Tarlei Arriel Botrel, professor da área de hidráulica da Esalq-USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), fala que a irrigação não pode ser vilanizada. "A irrigação é a transformação da água em alimento, e precisamos comer".

Ele e outros analistas concordam, porém, que há desperdício nessa área, como perdas por evaporação, pelo vento ou mesmo pelo excesso de água jogada nas plantas.

"Quando há displicência na irrigação, alguns lugares do plantio recebem mais água que os outros. Mas há métodos de irrigação de precisão, que diferenciam as plantas por seu tamanho e pela cultura. Com a escassez, está havendo uma mudança de mentalidade: é preciso saber quando e o quanto irrigar."

Que práticas podem evitar desperdícios?

Botrel afirma que tende a crescer a técnica de irrigação chamada de gotejamento (em que mangueiras direcionam gotas d’água às raízes das plantas), que, apesar de mais cara, economiza água.

Rodrigues, da Embrapa, afirma que simulações de irrigação (levando em conta regime de chuvas e necessidade das plantas) evitam que a água seja usada aleatoriamente.

"Se o produtor não é orientado, ele irriga como der, mas, se fazemos simulações de longo prazo, conseguimos saber o quanto colocar de água em vez de jogar água à toa", diz o pesquisador.

Uma tecnologia importante, ainda que pouco usada, é a de sensores e drones, que ajudam a identificar o melhor momento para irrigar. E há, também, projetos para utilizar a água de esgoto semitratado para usos agrícolas.

Hespanhol, da USP, defende que estações simples de tratamento de esgoto, perto de grandes centros urbanos, forneçam água para pequenos produtores. Mas essa técnica tem um risco: se a água não for bem tratada, pode contaminar a plantação com parasitas.

"Em geral, temos feito pouco uso controlado de esgoto tratado (para fins agrícolas) e de forma não planejada", afirma Hespanhol. "Esse uso controlado consiste em tratamento da água, em técnicas de aplicação – de forma que o esgoto não atinja as partes comestíveis das plantas – e na proteção dos agricultores, que devem ter acesso à educação, vacinação e água potável para o consumo próprio."

A pesquisa é outra frente na busca por eficiência: já existem, por exemplo, tipos de trigo que crescem com menos água. "O objetivo final é reduzir o uso da água sem perder produtividade", diz Rodrigues.

Em algumas regiões, os próprios agricultores apresentaram soluções para manter suas outorgas e evitar que seu uso concorra com o consumo humano. "Em Botucatu (SP), produtores começaram a irrigar suas plantações no final da tarde, para reduzir a evaporação, e pararam de usar defensivos agrícolas em uma faixa a 100 m de distância do rio local, para evitar contaminação", diz Ribeiro, da SOS Mata Atlântica.