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Eventos extremos provocam chuvas recordes e centenas de mortos no Brasil

Chuva recorde em Petrópolis (RJ) deixou cerca de 230 mortos no começo do ano - Lucas Landau/UOL
Chuva recorde em Petrópolis (RJ) deixou cerca de 230 mortos no começo do ano Imagem: Lucas Landau/UOL

Rafael Neves e Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL em Brasília e em São Paulo

05/06/2022 04h00

Enquanto os brasileiros tiram os cobertores do armário no Sul e, no Nordeste, contabilizam os mortos após chuvas torrenciais em pleno outono, no hemisfério norte alguns países derretem sob um calor atípico na primavera. A surpresa de populações inteiras com a mudança no tempo não surpreende cientistas, que há anos alertam: se a temperatura da Terra não parar de subir até 2030, eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes no Brasil e no mundo.

O mês de março na Índia foi o mais quente em 122 anos; no Paquistão, o mais quente da história. As temperaturas que beiraram os 50ºC nesses países provocaram cortes frequentes de energia e de fornecimento de água para 1,4 bilhão de pessoas (quase 20% da população mundial).

Na Espanha, uma onda recorde de calor em maio elevou em 7ºC a temperatura média para o mês em todo o país. Em Jaén, a 332 km da capital Madri, o calor foi de 40ºC, "episódio muito incomum que pode ser um dos mais intensos dos últimos 20 anos", estima Ruben del Campo, porta-voz da agência estatal de meteorologia.

Aldeão caminha pelo fundo rachado de uma lagoa seca em um dia quente de verão em uma vila na Índia - Prakash Singh/AFP - 11.mai.2022 - Prakash Singh/AFP - 11.mai.2022
Aldeão caminha pelo fundo rachado de uma lagoa seca em um dia quente de verão em uma vila na Índia
Imagem: Prakash Singh/AFP - 11.mai.2022

No Brasil, maio pegou as regiões Sul e Sudeste de surpresa, com temperaturas muito baixas para o outono. A última semana do mês começou com termômetros abaixo de 0ºC em algumas cidades, como na gaúcha Pinheiro Machado, onde registraram -5,6ºC.

A massa de ar frio que atingiu boa parte da América do Sul, no mês passado, também derrubou marcas históricas em lugares onde as temperaturas baixas são coisa rara. A cidade-satélite do Gama, a 30 km de Brasília, registrou em 19 de maio a temperatura de 1,4ºC, a mais baixa já vista no Distrito Federal.

Esses extremos climáticos não estão vinculados necessariamente à estação em que seriam esperados, diz o climatologista José Marengo —membro da Academia Mundial de Ciências—, que usa como exemplo as ondas de frio fora de época que vêm atingido a região Sudeste, especialmente o estado de São Paulo.

Na primavera de 2020, por exemplo, uma onda de calor atingiu São Paulo, derrubando antigos recordes. Naquele mês, o estado registrou quatro das dez temperaturas mais altas já aferidas, incluindo a mais extrema: no dia 7 de outubro, os termômetros em Lins marcaram 43,5 ºC, batendo o recorde estadual que durava desde 1933, segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia).

O evento climático extremo mais recente, no entanto, foi a chuva que desabou sobre o Nordeste, deixando 128 mortos em Pernambuco, em roteiro que já se repetiu seis vezes no Brasil entre dezembro do ano passado e o início de 2022, quando, no fim do verão, temporais arrastaram casas inteiras construídas sobre encostas na Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (Petrópolis duas vezes e Angra dos Reis).

A cidade da região serrana do Rio foi a que registrou o maior número de mortos por causa das chuvas este ano: 233.

Eventos climáticos extremos no Brasil

Ainda dá tempo de reverter?

É com números pessimistas que o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), da ONU (Organização das Nações Unidas), tenta ser otimista: seu último relatório aconselha o mundo a zerar as emissões de gases poluentes até 2030 como condição para reduzir a frequência de eventos climáticos fora dos padrões.

A data não foi escolhida por acaso. O desmatamento e queima de combustíveis fósseis já aqueceram o planeta em 1,2ºC em relação aos níveis pré-industriais. Se essas emissões não cessarem, o mundo romperá a marca de 1,5ºC justamente em 2030, uma década antes do que o IPCC previu há três anos.

Boneco de neve de São Joaquim, Santa Catarina, em pleno outono de 2022 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Boneco de neve de São Joaquim, Santa Catarina, em pleno outono de 2022
Imagem: Arquivo pessoal
O resultado, segundo o IPCC, é que se tornará irreversível a repetição cada vez mais frequente de fortes ondas de frio, calor, inundação e secas prolongadas.

"Esses extremos climáticos se devem a atividades humanas", diz Ana Paula Cunha, pesquisadora do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). "Não dá para garantir que um evento especifico em algum ponto se deva ao aquecimento global, mas dá para afirmar que o aumento da intensidade e da frequência, como temos visto no Brasil, é culpa das mudanças climáticas."

O aquecimento global está afetando todas as regiões da Terra, com muitas mudanças se tornando irreversíveis.
Relatório do IPCC

Marengo lembra que esses extremos de temperatura e precipitação têm ocorrido de maneira combinada, "como uma onda de calor que acontece junto com uma seca: é a receita para uma estação de queimadas muito intensas, como aconteceu em 2020 no Pantanal", compara.

Queimada na Amazônia, seca no Sul

Se o Brasil decidir fazer a sua parte para desacelerar o aquecimento na Terra, bastará pôr fim ao desmatamento e às queimadas, o principal emissor de gases poluentes por aqui. O problema é que os focos de incêndio cresceram 23% em dez anos —1.875 em 2012, contra 2.308 em 2021—, enquanto o desmatamento bate recordes seguidos.

"A maioria dos extremos climáticos no Brasil está ligada às mudanças provocadas pelo aquecimento global", diz Carlos Nobre, climatologista especializado em Amazônica eleito no mês passado membro da Royal Society, a academia de ciência mais antiga do mundo (desde 1660). "Como o aquecimento induz a secas mais intensas na Amazônia, o desmatamento e degradação fazem os eventos extremos atingirem picos ainda maiores."

Queimadas na Amazônia - Joao Laet/AFP - Joao Laet/AFP
Queimadas na Amazônia aceleram o aquecimento global e resultam em seca no Sul do Brasil
Imagem: Joao Laet/AFP
Pior para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. O pesquisador explica que o aumento da estação seca no sul da Amazônia --que desde o final da década de 1970 aumentou em cinco semanas-- está reduzindo os chamados rios voadores, vapor d'água formado sobre a floresta que se desloca para a região Sul e precipita em forma de chuva sobre a bacia do rio Paraná.

Em 2021, a seca na bacia provocou racionamento de energia e de água nessas regiões do país.

"Se esses rios voadores diminuírem muito, vão influenciar as chuvas também no Uruguai, Paraguai e Argentina", diz Nobre. "Isso já está afetando o agronegócio. Secas extremas com ondas de calor têm derrubado a produção de soja."

Amazônia vai virar savana?

Mas o prognóstico mais preocupante é para a própria Amazônia, cada vez mais próxima do temido "ponto de não retorno", termo cunhado por Nobre para alertar para a "savanização" da maior floresta tropical do mundo.

"Esse ponto de não-retorno significa que o clima na Amazônia está mudando por uma combinação de aquecimento global e alterações do uso da terra, como utilização de fogo e desmatamento para formação de pastagens", diz Nobre. "Essa mudança está alterando o sistema ecológico da floresta tropical para uma 'savana tropical' muito degradada. Isso está muito próximo e, se acontecer, será irreversível."

Vista de savana amazônica queimada na região de Ponta das Pedras, no Pará - Rubens Chaves/Folhapress - Rubens Chaves/Folhapress
Vista de savana amazônica queimada na região de Ponta das Pedras, no Pará
Imagem: Rubens Chaves/Folhapress
O climatologista explica que, enquanto as árvores na Amazônia se adaptaram à umidade do bioma, "o oposto aconteceu ao Cerrado", onde espécies evoluíram com o fogo. "Ali, as árvores são menores, têm casca mais grossa e se tornaram resilientes ao fogo."

"A Amazônia tem espécies do Cerrado também. Se passarmos do ponto de não retorno, as árvores típicas amazônicas vão morrer e só vão sobrar as que resistem às secas. Será um tipo de savana, mas degradada", explica o cientista.

Estamos na véspera, na beira desse ponto. Alguns cientistas acham que no Sul e Sudeste da Amazônia já passamos do retorno. Eu acho que ainda temos uma chance."
Carlos Nobre, cientista

Nobre defende "zerar o desmatamento para ontem". "Tem de zerar o desmatamento em toda a Amazônia antes de 2030. Ao mesmo tempo, precisa restaurar as florestas, ao regenerar pastagens", diz.

5 meses, 457 mortos

Se no Sul e na Amazônia a novidade é a seca, no Nordeste o imprevisto são as cheias. Só em Pernambuco, a chuva fora de época matou mais de 120 pessoas em pleno mês de maio.

Pelas contas da Confederação Nacional de Municípios, ao menos 457 brasileiros morreram em desastres causados por temporais apenas entre janeiro e maio. É 57% mais do que todo o ano passado, quando 290 pessoas morreram assim.

O Cemaden estima em pouco mais de 8 milhões o número de brasileiros vivendo em casas construídas em área de risco. O cálculo é da coordenadora de Relações Institucionais do Centro, Regina Célia dos Santos Alvalá, que, com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estimou a existência de 27 mil áreas de risco em 825 cidades.

"No Brasil há concentração de pessoas vivendo na costa, onde a topografia é mais acidentada", diz Alvalá. "A combinação de costa montanhosa com Mata Atlântica derrubada são ingredientes adicionais para os desastres", que devem ficar "mais frequentes e intensos" por causa das mudanças climáticas.

Em Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, Corpo de Bombeiros resgatam no início da tarde deste domingo (29/05) pessoas que estavam ilhadas na região - Corpo de Bombeiros PE - Corpo de Bombeiros PE
Em Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, Bombeiros resgatam pessoas que ficaram ilhadas
Imagem: Corpo de Bombeiros PE
Os pobres são os principais afetados. De 2010 a 2020, diz o IPCC, "a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis" em comparação com regiões mais ricas.

Sem água e comida?

A morte de centenas de brasileiros todos os anos durante chuvas torrenciais é apenas o mais evidente dos desastres provocados pelo aquecimento global. Ana Paula, do Cemaden, lista outras tragédias com as quais o brasileiro precisará lidar se a temperatura no planeta continuar subindo.

Um dos problemas, diz ela, é que a produção energética brasileira é muito dependente da água, "apesar do déficit hídrico ter aumentado nos últimos dez anos em todo o Brasil".

Trecho quase seco do rio Paraná na cidade de Rosario, na Argentina, em julho de 2021 - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas
Trecho quase seco do rio Paraná na cidade de Rosario, na Argentina, em julho de 2021
Imagem: Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas
"Já não faz mais sentido essa ideia de que temos muita água disponível", diz a pesquisadora. "As projeções são de aumento de temperatura, chuvas cada vez mais curtas ou chuvas torrenciais aleatórias que já impactam na produção de energia no Brasil."

Como 70% da energia produzida no país vem de hidrelétricas, a especialista recomenda "diversificar" a matriz.

O Brasil é um país continental, com regiões para desenvolver energia solar e eólica. É fazer um mix, e não apostar apenas em água."
Ana Paula Cunha, do Cemaden

Outro problema, alerta, é a segurança alimentar: "Falta água para irrigação: a agricultura é o setor que mais consome água no país, mas fica localizada na região mais crítica, que é a central. Em dez anos vamos enfrentar crises hídricas com impactos profundos em diferentes setores: consumo humano, energia e alimento."

Se, por um lado, é preciso gastar dinheiro para controlar emissões, reduzir desmatamento e impedir a expansão de áreas agrícolas, por outro, os governos precisam abrir os cofres para ações de prevenção a desastres.

"Há diversos estudos provando que gasta-se menos reduzindo os riscos do que mitigando os desastres já ocorridos", diz Ana Paula. "Há repasses do governo federal para isso [R$ 2,8 bilhões desde 2019], mas não há planejamento antes. O Brasil gasta muito com pós-desastre."

Os afetados são sempre os mais pobres: as chuvas os atingem porque vivem em áreas de risco, enquanto a seca aumenta o preço dos alimentos. É preciso reduzir as vulnerabilidades, mas disso nunca se fala."
Ana Paula Cunha, do Cemaden

Marengo afirma que as políticas climáticas são atrapalhadas, entre outros fatores, porque um governo pode mudar os rumos do antecessor na condução do tema. Mas o problema maior, diz, são os que se recusam a enxergar o problema.

"De nada adianta ter a melhor tecnologia, os melhores modelos, os melhores estudos e cientistas, se governos se esforçam para colocar em dúvida. É como uma doença: se você tem câncer, você tem que tratar", defende.

O cientista também critica o sistema econômico, que impede rupturas na atual forma de produção e consumo:

Se vai ser necessário continuar com a energia fóssil, que se reduza o uso e se invista em alternativas. Para impulsionar o agronegócio, você não precisa destruir toda a floresta."