'Não tem a quem recorrer': agricultor perde colheita e lago vira lama no AM

O produtor rural José Cristo Oliveira, de 47 anos, tenta alternativas para amenizar o prejuízo da colheita em sua propriedade, em Maués, a 257 km de Manaus. As altas temperaturas somadas à extrema seca que atingem o Amazonas fazem o agricultor projetar redução de 80% na safra de guaraná em sua propriedade, o que coloca em risco o sustento da família dele e de outros que dependem da colheita.

A realidade de Oliveira se soma a de outros produtores de Maués, que tem o guaraná como o seu principal fruto. O agricultor, que lidera o AAFAU (Associação dos Agricultores Familiares do Alto Urupadi), afirma que o clima desfavorável pode afetar cinco mil pessoas que têm no campo o seu único sustento na cidade de 65 mil habitantes, banhada pelo Rio Maués-Açu e seus afluentes — hoje sob seca severa.

"O guaraná requer chuva e sol. Mas temos somente o sol e numa temperatura bastante elevada. Com isso, a folha da planta seca e o fruto da colheita não fica bom para comercializar. Isso causa muita perda a todos os produtores. No meu caso, por exemplo, que colho algo cerca de 1,2 tonelada, se eu colher uns 200 quilos já vou considerar muito. É um prejuízo enorme", relatou ao UOL.

José Cristo Oliveira, produtor de guaraná de Maués
José Cristo Oliveira, produtor de guaraná de Maués Imagem: Arquivo Pessoal

De acordo com o boletim divulgado dia 10 de outubro pelo governo do Amazonas, 45 dos 62 municípios decretaram emergência em decorrência da estiagem, que já é considerada uma das maiores do Estado. A devastação baixou o nível dos rios a marcas nunca registradas. A estiagem, segundo especialistas, é comum na região, mas a intensidade deste ano tem relação com os efeitos do El Niño.

"Não temos para quem recorrer. Não temos nem como oferecer produtos de outras coleiras, como banana, feijão e melancia, para o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] aos colégios da cidade. Não estamos conseguindo cumprir nossos compromissos de entregas, é algo geral", relata Oliveira.

Rios viram ruas e afetam a vida da população

Do pouco que é colhido, segundo os agricultores, o escoamento vira um desafio. No Amazonas, 59 municípios dependem de hidrovias como modal de transporte. Desses, 38 estão em emergência em relação à locomoção de passageiros e cargas, segundo o governo. É o caso de Maués, afetando diretamente a comunidade que vive no campo.

"Está muito difícil chegar à sede do município e onde estão os barracões da produção. Moro a 80 km da sede de Maués. A viagem normal dura de sete a oito horas. Agora, chega a 14 horas com muita dificuldade porque o barco encalha e não é fácil chegar até Maués. Nunca vi nada parecido".

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Alto Urupadi, a 80 km de Maués, tem dificuldade para escoamento por causa da seca
Alto Urupadi, a 80 km de Maués, tem dificuldade para escoamento por causa da seca Imagem: José Cristo/Arquivo Pessoal

A dificuldade de logística também afetou a vida de outras cidades, como é o caso de Tefé, a 521 km de Manaus. Lá, mais de 100 botos apareceram mortos devido à temperatura elevada das águas.

O pesquisador sanitarista João Paulo Borges, de 38 anos, corrobora que a logística complicada deixou os alimentos mais caros. A inflação está relacionada à dificuldade no transporte de cargas. Com a baixa dos rios, 90% dos barcos autorizados a operar cargas possuem algum tipo de restrição de peso em razão do calado da embarcação, diz o governo. Somado a isso, o combustível para o ramo aumentou 9,17%.

Seca no lago Tefé, no Amazonas, em fotos de 28 e 29 de setembro de 2023
Seca no lago Tefé, no Amazonas, em fotos de 28 e 29 de setembro de 2023 Imagem: João Paulo Borges Pedro / Instituto Mamirauá

"A situação é crítica. A seca está intensa, está além do esperado, com transtornos. Entregas que deveriam chegar a Tefé estão atrasadas porque os barcos estão demorando mais e encalham. O custo aumenta e impacta diretamente no preço dos produtos, principalmente entre os mais pobres", frisa Borges.

O pesquisador, que também trabalha com captação de imagens aéreas, diz ainda tenta lidar com o impacto dos registros na seca.

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O que mais me marcou foram as residências flutuantes, bem características da região norte, encalhadas. As pessoas, tendo que carregar a água sob forte sol, também foi o que me deixou mais impactado. Isso é bem triste visualmente, considerando um povo que depende muito do rio. Ver o encalhe é de cortar o coração.
Paulo Borges, morador de Tefé

O representante comercial Ely da Costa Santos, de 31 anos, fez um registro impressionante da força da seca em Tefé. O nível da água baixou tanto que o Lago Tefé, na divisa com o município de Alvarães, secou totalmente. O percurso entre as cidades, que antes era feito em 15 minutos em lancha, passou a ser feito por bikes e motos.

"Quando está cheio, fica a uns 10 a 15 metros de profundidade. Esse ano secou tanto, que ligou as duas cidades via terrestre. Deu 15,5 km, um trajeto de 50 minutos entre lamas, areia e barro seco. Eu passei por um trecho que chega a ter 15 metros de profundidade quando está cheio", detalha.

Seca afeta sonho de empreendedor: 'Prejuízo de R$ 8 mil'

Situação semelhante vive o empreendedor Altemir Viana, de 45 anos. Sociólogo e consultor político, começou a investir no ramo turístico em agosto de 2022 quando usou o dinheiro de uma indenização trabalhista para comprar um flutuante, que é uma "casa-barco" muito comum como moradia entre ribeirinhos. A estrutura é de madeira e também se torna um atrativo com restaurantes ou aluguel de diárias para turistas.

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O flutuante de Altemir fica no rio Tarumã-Açu, em Manaus. O empreendimento dele funciona com aluguel de diárias e pernoites, tendo capacidade para 30 pessoas, com 10 metros de frente por 15 metros de comprimento. São 150 metros quadrados. Com a seca, está praticamente no chão, conforme mostram imagens gravadas por Altemir.

Flutuante de Altemir Viana está inoperante durante a seca, em Manaus
Flutuante de Altemir Viana está inoperante durante a seca, em Manaus Imagem: Altemir Viana/Arquivo Pessoal

"Deixamos de alugar e de reservar para os clientes. Temos um prejuízo estimado de R$ 5 mil a R$ 8 mil reais por mês. Mas temos colegas do ramo estão tendo prejuízo de uns R$ 20 mil de renda que deixará de entrar nesse período, sem falar no restante da cadeia de envolvidos, como os donos de estacionamento, os barqueiros que transportam os clientes e os diaristas que atuam para limpar e arrumar os flutuantes", relata.

Somente no rio Tarumã-Açu, são 913 flutuantes, sendo 194 residenciais, 251 garagens, 415 comerciais e 53 são píeres. A cadeia que atravessa o ramo envolve duas mil pessoas que dependem deles para tirar o seu sustento.

"Desde o dia 15 de setembro estamos parados, vamos fazer um mês que não temos renda daquele empreendimento, só despesas".

Como o flutuante depende do rio, Altemir diz que não tem muita alternativa que não seja esperar o nível subir.

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"Nosso desafio é ao menos amenizar o prejuízo. Estamos buscando organizar outro negócio no ramo de eventos e alimentação noutro espaço em Manaus. A segunda questão é esperar a água voltar. Fui ver o flutuante e o sentimento é de cemitério, tudo muito triste. Sinceramente, não temos planos, ainda estamos sem rumo. Vamos reformar o flutuante e trabalhar para ter mais opções para os nossos clientes.
Alternir Viana, dono de flutuante

Além dos flutuantes, Manaus também vê um dos seus principais atrativos turísticos sob forte influência da seca. A Praia de Ponta Negra acabou fechada e o mau cheiro de peixes mortos viraram obstáculo para visitantes. A autônoma Gorete Coelho, de 49 anos, registrou a estiagem.

"Fui à Praia da Ponta Negra e vi vários peixes mortos com aves em volta. A água baixou bastante. Eu gosto muito de correr lá, mas a água estava com o cheiro muito forte. Nunca vi chegar nesse nível. E ver uma situação dessa é muito triste. Em todo esse tempo que moro em Manaus, nunca vi nada parecido. Há áreas que secam bastante, mas nesse nível é surpreendente".

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