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Carta de Bolsonaro a Biden mira conciliação, mas contradiz ações do governo

Em carta endereçada a Biden, Bolsonaro exaltou a relação entre os EUA e o Brasil - Nelson Almeida/AFP
Em carta endereçada a Biden, Bolsonaro exaltou a relação entre os EUA e o Brasil Imagem: Nelson Almeida/AFP

Juliana Arreguy

Do UOL, em São Paulo

20/01/2021 22h11

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) adotou um tom conciliatório em carta endereçada ao recém-empossado presidente dos EUA, Joe Biden, ao mirar em discurso pela preservação da Amazônia e combate às mudanças climáticas. No entanto, o teor contradiz com ações adotadas pelo governo federal, incluindo ataques ao próprio Biden quando este falou sobre a devastação na Amazônia.

Bolsonaro dedicou-se a lembrar acordos entre os EUA e o Brasil e a exaltar a relação entre os dois países. Ele também mencionou "ameaças à democracia", sem citar suas desconfianças ao sistema eleitoral americano —e também ao brasileiro.

O texto foi publicado na tarde de hoje após a posse de Biden. Confira, a seguir, alguns trechos contraditórios da carta e veja a íntegra ao final:

Amazônia e mudanças climáticas

Estamos prontos, ademais, a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado. Noto, a propósito, que o Brasil demonstrou seu compromisso com o Acordo de Paris com a apresentação de suas novas metas nacionais.

Durante a campanha presidencial, em setembro de 2018, Bolsonaro chegou a ventilar a possibilidade de deixar o Acordo de Paris caso fosse eleito. Meses antes, o então presidente americano, Donald Trump, anunciou a retirada dos EUA do tratado. A saída só ocorreu em novembro deste ano e já com a promessa de Biden que, se eleito, retornaria ao compromisso.

O anúncio da volta dos EUA ao acordo foi feito hoje durante a posse do democrata.

A atitude do governo brasileiro diante de políticas ambientais e metas para frear as mudanças climáticas são malvistas em âmbito internacional. Em dezembro, Bolsonaro ficou de fora da Cúpula do Clima após a ONU (Organização das Nações Unidas) rejeitar o plano nacional de redução de emissões de gases de efeito estufa.

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Imagem mostra área devastada pelo fogo na Amazônia
Imagem: Christian Braga / Greenpeace

Enquanto a China anunciou a meta de reduzir as emissões em 65% até 2030 e zerá-las até 2060, o Brasil se comprometeu a reduzir emissões em apenas 43% nos próximos nove anos.

Bolsonaro também já desferiu ataques a Biden por declarações a respeito da Amazônia. Em setembro passado, o democrata prometeu US$ 20 bilhões (cerca de R$ 106 bilhões) para combater a devastação na região, e avisou que haveria retaliações se o governo brasileiro continuasse a permitir desmatamento e queimadas na área.

O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) aponta que o desmatamento na Amazônia aumentou 9,5% no Brasil no último ano, o maior nível anual desde 2008 na região.

Num reflexo das políticas sobre o tema, no entanto, em 2020 foi aplicada a menor quantidade de multas por desmatamento ilegal na história.

'Ameaças à democracia'

Brasil e Estados Unidos coincidem na defesa da democracia e da segurança em nosso hemisfério, atuando juntos contra ameaças que ponham em risco conquistas democráticas em nossa região.

A própria eleição de Biden foi contestada por Bolsonaro, que se declarou "ligado a Trump" e já acusou, em mais de uma ocasião, o sistema eleitoral americano de fraude.

O presidente da República foi o último líder dos países do G-20 a reconhecer a vitória do democrata e levou 38 dias para cumprimentar Biden pela eleição.

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Bolsonaro adotou narrativa infundada de Trump sobre fraude em eleição
Imagem: Alan Santos/PR

Bolsonaro chegou a declarar que a invasão de apoiadores de Trump ao Congresso dos EUA foi motivada pela insatisfação dos eleitores pelas supostas irregularidades na eleição.

A narrativa de fraude eleitoral já foi derrubada no país após a Justiça americana negar diversos recursos apresentados pela campanha do republicano.

Confira a carta na íntegra:

"Senhor Presidente,

Tenho a honra de cumprimentar Vossa Excelência neste dia de sua posse como 46º presidente dos Estados Unidos da América.

O Brasil e os EUA são as duas maiores democracias do mundo ocidental. Nossos povos estão unidos por estreitos laços de fraternidade e pelo firme apreço às liberdades fundamentais, ao estado de direito e à busca de prosperidade através da liberdade.

Pessoalmente, também sou de longa data grande admirador dos Estados Unidos e, desde que assume a Presidência, passei a corrigir os equívocos de governos brasileiros anteriores, que afastaram o Brasil dos EUA, contrariando o sentimento de nossa população e os nossos interesses comuns.

Assim, inspirados nesses valores compartilhados, e sob o signo da confiança, nossos países têm construído uma ampla e profunda parceria.

No campo econômico, o Brasil, assim como os empresários de nossos dois países, tem interesse em um abrangente acordo de livre comércio, que gere mais empregos e investimentos e aumente a competitividade global de nossas empresas. Já temos como base os recentes protocolos de facilitação de comércio, boas práticas regulatórias e combate à corrupção, que certamente contribuirão para a recuperação de nossas economias no contexto pós-pandemia. A esses acordos se somam recente Memorando entre o Ministério da Economia do Brasil e o Eximbank, para estimular os financiamentos de projetos, e nosso Acordo de Cooperação para o Financiamento de Projetos de Infraestrutura.

Na área de ciência e tecnologia, o potencial de cooperação é enorme, como ficou ilustrado pelo ambicioso plano de trabalho desenvolvido por nossa Comissão Mista e pela conclusão do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, que permitirá lançamentos espaciais a partir da base de Alcântara, no Brasil. O mesmo se aplica à área de defesa, com a conclusão de nosso Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação.

Nas organizações econômicas internacionais, o Brasil está pronto para continuar cooperando com os EUA para a reforma da governança internacional. Isso se aplica, por exemplo, à OMC, onde queremos destravar as negociações e evitar as distorções de economias que não seguem as regras de mercado. Na OCDE, com o apoio dos EUA, o Brasil espera poder dar contribuição mais efetiva e aumentar a representatividade da organização. Nosso processo de acessão terá, também, impacto fundamental para as reformas econômicas e sociais em curso em nosso país.

Estamos prontos, ademais, a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado. Noto, a propósito, que o Brasil demonstrou seu compromisso com o Acordo de Paris com a apresentação de suas novas metas nacionais

Para o êxito no combate à mudança do clima, será fundamental aprofundar o diálogo na área energética. O Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo e, junto com os EUA, é um dos maiores produtores de biocombustíveis. Tendo sido escolhido país líder para o diálogo de alto nível da ONU sobre Transição Energética, o Brasil está pronto para aumentar a cooperação na temática das energias limpas.

Brasil e Estados Unidos coincidem na defesa da democracia e da segurança em nosso hemisfério, atuando juntos contra ameaças que ponham em risco conquistas democráticas em nossa região. Adicionalmente, temos cooperado para impedir a expansão das redes criminosas e do terrorismo, que tantos males causam a nossos países e aos demais países da América Latina e do Caribe.

Necessitamos também continuar lado a lado enfrentando as graves ameaças com que hoje se deparam a democracia e a liberdade em todo o mundo e que se tornam mais prementes no mundo pós-covid: o crime organizado transnacional; as distorções ao comércio mundial e ao fluxo de investimentos oriundas de práticas alheias ao livre mercado; e a instrumentalização de organismos internacionais por uma agenda também contrária à democracia.

Entendo que interessa aos nossos países contribuir para uma ordem internacional centrada na democracia e na liberdade, que defensa os direitos e liberdades fundamentais de todos e, muito especialmente, de nossos cidadãos. E estamos dispostos a trabalhar juntos para que esses valores fundamentais estejam no centro das atenções, seja bilateralmente, seja nos foros internacionais.

É minha convicção que, juntos, temos todas as condições para seguir aprofundando nossos vínculos e agenda de trabalho, em favor da prosperidade e do bem-estar de nossas nações.

O Brasil alcançou sua Independência em 1822, e os EUA foram o primeiro país a nos reconhecer. Em 1824, foram estabelecidas nossas relações diplomáticas. São dois marcos históricos cujo bicentenário, em futuro próximo, os brasileiros queremos celebrar com nossos amigos americanos.

Ao desejar a Vossa Excelência pleno êxito no exercício de seu mandato, peço que aceite, Senhor Presidente, os votos de minha mais alta estima e consideração."