Bolsonaro e Michelle na PF: o que diz a lei sobre as joias presenteadas

A investigação sobre as joias que envolvem o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a ex-primeira-dama Michelle e aliados levantou questões sobre o que diz a legislação em relação a autoridades receberem presentes. O casal Bolsonaro depõe hoje simultaneamente na Polícia Federal, ao lado de mais seis pessoas, entre elas Mauro Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente e está preso desde maio.

O que diz a lei

O TCU (Tribunal de Contas da União) determinou em 2016 que bens recebidos de chefes de Estado pelo presidente durante o exercício do mandato pertencem à União. Presentes oferecidos por cidadãos, empresas e entidades costumam permanecer com os ex-presidentes.

Há duas exceções que permitem ao presidente ficar com o presente oferecido por um chefe de Estado: quando eles são de "natureza personalíssima" ou de "consumo imediato". Nesse acórdão (decisão de órgão colegiado), o TCU cita como itens personalíssimos medalhas personalizadas. Já em relação aos itens de consumo, são citados bonés, camisas, camisetas, gravata, chinelo e perfume.

Joias não se enquadram nessa terminologia de itens "personalíssimos". O relator do caso no TCU, ministro Walton Alencar, chegou a citar em seu voto que joias não poderiam estar na lista de presentes que ficariam com o presidente em exercício.

Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade.
Ministro Walton Alencar, relator do caso em 2016

Cronologia da lei e do caso das joias

1991: O presidente Fernando Collor de Mello sanciona a lei 8.394/1991, que trata da preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Ela não fala de presentes em nenhum dos seus 20 artigos e só cita o acervo documental do chefe do Executivo — diz que, em caso de venda, a União terá direito de preferência e que eles não podem ser alienados para o exterior sem manifestação da União.

2002: Um decreto (4.344/2002) assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso regulamenta a lei de 1991. Ele cita "presentes" pela primeira vez. O decreto diz que são considerados da União "os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das 'visitas oficiais' ou 'viagens de Estado' do presidente da República ao exterior ou de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil".

Assim, a interpretação vigente era a de que bens recebidos fora da cerimônia de troca de presentes eram do acervo pessoal.

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2016: O TCU determina a incorporação ao patrimônio da União de todos os documentos e presentes recebidos pelos presidentes a partir da publicação do decreto de 2002, excluindo apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo próprio. Por causa do novo entendimento, Lula (PT) e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) tiveram que devolver, ao todo, 471 presentes que tinham sido incorporados aos respectivos acervos pessoais.

2018: O ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência do governo Temer (MDB), Ronaldo Fonseca, assina uma portaria que classifica joias, semijoias e bijuterias como bens de natureza personalíssima.

A medida não teria validade legal, pois já havia um entendimento anterior do TCU sobre o tema, avaliam especialistas ouvidos pelo UOL.

Entendo que decisão do TCU, por sua competência, por firmar jurisprudência acerca do recebimento [de presentes], tem que ser seguida. Portanto, quando se fala em joias de alto valor, já havia sido acertado em 2016 que esses bens entram na categoria a serem entregues à União. Não podem ser vendidos. Luis Eduardo Patrone Regules, advogado na área de direito público

Prevalece o entendimento desse acórdão, trata-se de uma jurisprudência. Além de ser uma determinação, é posterior à lei de 1991 e ao decreto de 2002. Esse acórdão interpretou, de acordo com entendimento dos ministros, a lei. Vera Chemim, advogada constitucionalista

O próprio ex-ministro de Temer disse não considerar que as joias recebidas por Bolsonaro estão enquadradas nessa portaria de 2018. "Jamais! A portaria não diz isso. Quando a portaria diz joias, semijoias e bijuterias, é preciso olhar o contexto. Fala de roupa de cama, artigos de escritório... Eu acho que a interpretação deve ser dada pelo contexto", declarou Fonseca, em entrevista ao site The Intercept Brasil.

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Bolsonaristas têm usado essa portaria para defender que o ex-presidente poderia ter ficado com as peças. No entanto, ela já não possui efeito.

Outubro de 2021: O governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente para o país colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes avaliados em cerca de R$ 5 milhões pela Receita Federal. As joias eram um presente do regime saudita para o então presidente e a primeira-dama e foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos. O caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Outra caixa com joias passou pela alfândega sem ser declarada e foi entregue ao ex-chefe do Executivo.

Colar do kit de joias feminino dado ao governo Bolsonaro pela Arábia Saudita
Colar do kit de joias feminino dado ao governo Bolsonaro pela Arábia Saudita Imagem: Reprodução / TV Globo

Novembro de 2021: Mario Fernandes, da Secretaria-Geral da Presidência, publica portaria revogando a norma de 2018. Sobre presentes, esse novo ato menciona apenas bens museológicos recebidos em cerimônias protocolares, os quais devem ser catalogados e incorporados ao patrimônio da Presidência.

Junho de 2022: Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro, viaja para a Pensilvânia (EUA) para vender relógios dados de presente ao então presidente. Segundo a PF, ele se deslocou até a sede da loja Precision Watches, na cidade de Willow Grove, e concretizou a venda do Rolex e do Patek Philippe pelo valor de US$ 68 mil (cerca de R$ 332 mil).

Março de 2023: O TCU abre investigação para apurar irregularidades no recebimento das joias de autoridades estrangeiras e de outros objetos durante a gestão de Bolsonaro. O ex-presidente devolve joias, após determinação do TCU.

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Abril de 2023: Frederick Wassef, advogado que já defendeu o ex-presidente, entrega o Rolex que havia sido vendido nos EUA e que ele recomprou após o TCU ordenar a devolução dos presentes que o ex-presidente ganhou. Ele dá o relógio a Cid em 2 de abril, em um encontro em São Paulo, e o item é devolvido pela defesa de Bolsonaro no dia 4 de abril, em Brasília.

Rolex dado de presente ao Brasil e vendido
Rolex dado de presente ao Brasil e vendido Imagem: Reprodução

Agosto de 2023

11 de agosto: A Polícia Federal cumpre mandados de busca e apreensão nos endereços do general Mauro Cesar Lourena Cid, pai de Cid, e de Wassef. O objetivo é investigar desvios de joias e outros bens de valor obtidos pelo ex-ajudante de ordens em viagens oficiais no governo Bolsonaro e sua posterior venda ilegal no exterior.

31 de agosto: Bolsonaro e Michelle depõem à PF. O órgão quer saber de quem partiu a ideia de vender joias e relógios recebidos do governo da Arábia Saudita, quem foram os compradores dos produtos e como se deu o processo de recompra.

A estratégia da defesa do ex-presidente é afirmar que os objetos eram de propriedade do ex-presidente, portanto, não seria crime negociá-los para venda, conforme mostrou a colunista do UOL Carolina Brígido.

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