Subnotificação, crise, polarização: razões para baixa adesão ao isolamento
Resumo da notícia
- A subnotificação de casos de covid-19 faz com que a população tenha percepção que a epidemia é menos grave
- Isto faz com que parte da população relaxe no isolamento social, que ontem voltou a cair em São Paulo
- Com a adesão baixa ao isolamento, mais gente se expõe, pega e transmite o coronavírus e os casos aumentam, ainda que fora das estatísticas
- Discursos políticos diferentes sobre o isolamento e a falta de solidariedade agravada pelas crises vividas pelo país contribuem para o relaxamento
A subnotificação de casos de covid-19, admitida inclusive pelo Ministério da Saúde, contribui para que a população subestime a pandemia e relaxe na adesão ao isolamento social. Para especialistas ouvidos pelo UOL, isso gera um círculo vicioso: mais gente vai para as ruas e mais casos ficam fora das estatísticas oficiais, aumentando a proliferação da doença causada pelo novo coronavírus.
"A subnotificação reforça nas pessoas o sentimento de que pode sair por aí", afirma o epidemiologista Mauro Sanchez, professor da UnB (Universidade de Brasília).
Razões políticas, econômicas e sociais também explicam a baixa adesão ao isolamento social, explicam pesquisadores da área do Direito e Psicologia.
"Não aderir não é uma opção para quem trabalha em atividades essenciais. Mas, para as atividades não essenciais, essa atitude pode ser sintoma de uma forte falta de solidariedade e de compreensão da gravidade da situação, ou, ainda, [de falta de] de compromisso com a vida social", comenta Eduardo Bittar, professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.
Para Bittar, essa falta de solidariedade e compromisso "não são estranhos ao comportamento social no Brasil".
Pessoas que não trabalham em atividades essenciais acabam quebrando as medidas de isolamento social por necessidade.
Em várias cidades foram registradas grandes filas e aglomerações em busca de informações ou para tentar regularizar o CPF, para receber o auxílio emergencial ou outros benefícios pagos pelos estados. Há também quem precisa sair para trabalhar informalmente.
Crises degradam relações
O professor do curso de Direito da USP lembra que a pandemia de covid-19 chega ao país após "um conjunto sucessivo de crises anteriores que degradaram progressivamente a cultura de alteridade, a conexão com o outro e a capacidade de se colocar na 'pele do outro'".
Os protestos de 2013, o impeachment de 2016 e as eleições de 2018, associados a anos de crise econômica, geraram "clima de polarização, crise partidária, perda de identidade coletiva, crise das instituições democráticas e crescimento de intolerâncias de todas as ordens", avalia o professor de Direito.
Na opinião de Bittar, essas atitudes "revelam perda de identidade, falta de empatia, desconexão com o outro, alienação social e negação ostensiva da realidade, ainda que sob o risco de comprometer a própria saúde ou a própria vida".
Onipotência e egocentrismo contribuem
Para a psicóloga Letícia Kancelkis, mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC-Campinas, é comum nos jovens a "fantasia de onipotência", que pode atingir também pessoas mais velhas.
As pessoas com essa fantasia acreditam que seus atos não trazem consequências. "Acham que podem dirigir em alta velocidade e nada acontecerá. Da mesma forma, creem que podem sair por aí e aderir a aglomerações em meio a uma pandemia", afirma.
A psicóloga também aponta o crescente egocentrismo como causa da baixa adesão ao isolamento. "O que vale é a satisfação do indivíduo e não do grupo, e a empatia se transforma em artigo de luxo. Para que eu pensaria na senhorinha que mora ao lado se não faço parte do grupo de risco?", observa.
Discursos diferentes no poder público não ajudam
Além da subnotificação, a falta de solidariedade e compromisso social do brasileiro, agravada por anos de crise econômica e política, e os diferentes discursos das autoridades sobre como deve ser o isolamento não contribuem para a adesão voluntária ao isolamento.
"A diferença entre os discursos do ex-ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta] e do presidente sobre o distanciamento já atrapalha. Se além disso tem subnotificação, a população não tem a noção de que o problema é grave e acha que a doença não chegará até ela", comenta o epidemiologista Sanchez.
"Se o patamar real da pandemia superar os 300 mil casos, o restante dessas pessoas com sintomas leves ou moderados estão nas ruas transmitindo a doença para mais gente ", afirmou o professor de medicina social Domingos Alves, da Faculdade de Medicina da USP Ribeirão Preto.
Segundo dado divulgado ontem no site do Ministério da Saúde, foram confirmados 33.682 casos de covid-19 no país e 2.141 óbitos, até o momento.
Os professores Sanchez e Alves integram a iniciativa Covid-19 Brasil, formada por cientistas de diferentes universidades brasileiras para a análise de dados públicos e projeções sobre a doença.
Índice de isolamento social não atinge meta
Em São Paulo, por exemplo, após uma melhora no Domingo de Páscoa, o isolamento social se manteve em 50% por três dias seguidos e caiu para 49% na quinta-feira (16). O índice está abaixo da meta de 70% definida pelo governo paulista. O mesmo problema tem ocorrido em outras regiões metropolitanas, como na cidade do Recife.
O isolamento e o distanciamento social são as principais medidas para reduzir a velocidade do contágio pelo novo coronavírus, que causa a covid-19. As medidas são necessárias para reduzir o número de pessoas doentes ao mesmo tempo e evitar o colapso do sistema de saúde.
A subnotificação pode ser muito maior do que as autoridades admitem. Anteontem, o secretário de saúde de SP, José Henrique Germann, estimou que São Paulo pode ter 100 mil casos da doença.
Dois estudos de cientistas brasileiros apontam que o país pode ter de 12 a 15 vezes mais casos de covid-19 que os oficialmente contabilizados.
As autoridades afirmam que a subnotificação é causada pela escassez de testes no Brasil e a dificuldade dos laboratórios em processar a alta demanda de exames, como ocorre em São Paulo.
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