'Sempre vou ser mãe dele': ela busca justiça pela morte do filho há 10 anos

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Na newsletter Nós Negros desta semana, publicada especialmente neste domingo, Dia das Mães, em colaboração para o UOL, a repórter Lola Ferreira traz um relato especial sobre a maternidade de Ana Paula Oliveira, uma mãe negra, cuja trajetória tem representado e inspirado a de muitas outras mães negras pelo país. Confira abaixo.

Quando descobriu que estava grávida aos 17 anos, Ana Paula Oliveira se assustou. Era o suporte emocional de sua mãe, recém-divorciada, e temia que somasse ao sofrimento da separação os apontamentos de que a filha "deu errado" logo quando o pai saiu de casa. Escondeu a gravidez por quatro meses. Ao contar, ouviu: "eu já sabia. Você acha que eu não conheço minha filha?". Mãe sempre sabe.

Em 4 de dezembro de 1994, Ana Paula deu à luz a Johnatha de Oliveira Lima. Em 14 de maio de 2014, ela o enterrou, vítima da violência policial em Manguinhos, zona norte do Rio. Os 19 anos de intervalo entre as datas foram de reconciliação, transformação, luz, amor, carinho, festa, dança, suporte, levante e algumas broncas.

Quando Johnatha nasceu, a primeira transformação foi intrafamiliar: a relação de Ana Paula com o pai, José, rompida desde o divórcio com a mãe, Maria, foi restabelecida. Ao chegar na já extinta Casa de Saúde de Bonsucesso, José já estava lá. Quando Johninha nasceu, o avô pegou o menino nos braços, chorou e se declarou à filha mais velha: o casamento acabara, mas amor de pai e filha é para sempre.

Foi o nascimento do menino que também deu fim ao sofrimento de Maria e transformou um ex-casal em dois amigos-avós babões pelo primeiro neto.

Depois, a transformação profissional. Antes do filho completar o primeiro ano, Ana Paula se candidatou a uma vaga em uma creche na região, onde trabalhou por oito anos. Hoje, aos 48, é pedagoga. O laço forte entre Johnatha e a mãe fazia a vovó levá-lo para mamar e dormir, mesmo na creche, pois não tinha outro jeito: era agarrado naquele colo.

Johnatha cresceu amado pela família e venerado pelos amigos. Era o único que arrancava um sorriso do inspetor mais turrão do colégio e o mais disputado entre as meninas para namorar. Também era ele quem levantava todas as senhoras das famílias e da rua para uma dança nas festas. Forró, pagode, samba, funk, sertanejo, não importava: a alma das festas era Johnatha.

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Recentemente, Johnatha ganhou um xará: sua melhor amiga de infância nomeou o filho em homenagem ao amigo, ainda tão lembrado. Ao saber da notícia, Ana Paula chorou: "É o resultado do amor que ele plantou aqui".

Todo esse amor que atravessa telas e marca a voz e o choro foi declarado ao filho em vida.

"Eu nunca perdi a chance de falar que eu amava ele, o quanto ele era importante para mim. Às vezes a gente estava conversando, eu precisava dar uma bronca, mas no final eu falava que o amava. E ele também respondia: 'como eu te amo, mãe.'"
Ana Paula Oliveira, pedagoga

A notícia que mudou tudo

Em uma das últimas conversas entre mãe e filho, Ana Paula desabafou sobre uma decisão difícil a ser tomada. Tomou conselhos do garoto, ouviu uma brincadeira e sorriu. Na terça-feira, 13 de maio, Ana Paula recebeu a visita da mãe, que comentou estar com vontade de comer um pavê.

No dia 14 de maio, Ana Paula preparou o prato enquanto Johnatha recebia a namorada. Quando foi levar a moça em casa, fez o favor de levar o doce à casa da avó. A caminho de casa, tomou um tiro nas costas, disparado pelo policial militar Alessandro Marcelino de Souza, da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) Manguinhos.

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O menino morreu, no ano em que completaria seus 20 anos. "Ele não passou batido por esse mundo, tem uma história linda. Me sinto muito orgulhosa de ser mãe dele. O Jhonatha foi um presente para a minha vida, a transformou na chegada e na partida, porque nas duas vezes precisei de coragem para enfrentar a sociedade. E sempre foi ele quem me deu essa força", relembra Ana Paula, muito emocionada.

Antes de sair para enterrar o filho, Ana Paula ouviu uma reportagem clássica na imprensa carioca: "morreu uma pessoa negra / a polícia diz que houve troca de tiros / a família diz que não". Uma música fúnebre repetida a cada 8 horas no Rio de Janeiro, de acordo com os dados mais recentes da Rede de Observatórios.

Foi aquele texto repetido na TV, sem vida, que lhe deu forças.

"Eu achei que não iria aguentar, que eu iria morrer também. Não via sentido na vida sem meu filho, um pedaço de mim, me sentia um zumbi perdido no mundo. Mas quando vi a reportagem, recebi uma injeção de ânimo. Criei meu filho com muito sacrifício, com a ajuda só da minha família, com muito amor e cuidado. E agora o mesmo Estado que nunca me ajudou, mata meu filho e tenta dar legitimidade ao que fizeram? Eu não vou aceitar. O Jhonatha tem mãe. Eu vou viver para defender meu filho."
Ana Paula Oliveira, pedagoga

Essa força empurrou Ana Paula para a formação política e social. Entendeu que o filho morreu por ser um jovem negro, o terceiro a ser assassinado em Manguinhos depois da implementação da UPP. Juntou-se a outras mães e hoje é uma das porta-vozes do movimento Mães de Manguinhos, que luta contra a violência policial.

"Não tem como falar sobre essa política de segurança pública sem falar do racismo existente na sociedade, no país. Eu comecei a passar isso também para as outras mães, que ainda repetiam que os filhos foram mortos por bala perdida. É importante compartilhar esses conhecimentos, porque não vai ser na escola que vai acontecer isso. Essas pessoas precisam estar atentas, entender por que essa violência nos atinge. Não é por um acaso", alerta.

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Uma década até o julgamento

No dia 6 de março deste ano, Ana Paula viu o policial militar Alessandro Marcelino de Souza, da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) Manguinhos, ser condenado por homicídio culposo.

A Justiça entendeu que ele atirou em Johnatha pelas costas, mas não quis matá-lo - apesar de não haver troca de tiros ou do jovem não estar armado. O Ministério Público recorreu, e Ana Paula espera.

"São 10 anos de uma luta que continua independentemente do resultado do julgamento. Mesmo ele sendo condenado, a Justiça para mim não vai acontecer, porque não vão devolver meu filho. Mas eu luto por uma justiça de não repetição."

Mãe também da jovem Maria Paula, Ana Paula tenta se reerguer como mulher.

"São poucos os momentos em que eu consigo me encontrar, ter um encontro comigo, me olhar no espelho e ver que eu sou o que as pessoas falam, sou mesmo um mulherão. E quando eu consigo ter esse momento, eu me lembro muito do Jhonatha. Ele falava muito para eu me arrumar. O Jhonatha viveu tão intensamente, foi tudo aquilo que eu gostaria de ser, e sempre me incentivava a viver", relembra a mãe.

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"Eu faço questão de dizer que esse sistema nunca vai tirar de mim que eu sou a mãe do Jhonatha. Encontrei nessa luta uma forma de continuar exercendo minha maternidade, é por isso que eu não paro e vou até o fim, cuidando do meu filho e sentindo ele presente na minha vida. É um amor tão forte que ultrapassa barreiras."
Ana Paula Oliveira

Feliz dia das mães, Ana.

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Emily busca emprego desde que saiu do seu primeiro trabalho, em uma empresa de telemarketing, em fevereiro. Moradora da Vila Formosa, zona leste de São Paulo, ela conta que a tarefa tem sido difícil. E o fato de ela ser uma jovem negra de periferia, com dois irmãos mais novos, dificulta ainda mais esse processo de encontrar um emprego com carteira assinada.

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Dados do relatório "Mude Com Elas", da ONG Ação Educativa, mostram que o subemprego e informalidade ainda é um dos principais desafios socioeconômicos para jovens mulheres negras. No final de 2023, o desemprego de jovens mulheres negras — na faixa etária entre 18 e 24 anos — era de 18,3%. O percentual de homens brancos nessa condição era de 5,1%.

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