Topo

No leste da Ucrânia, guerra já é uma realidade há quase uma década

A movimentação de soldados em Novolugasnke, no leste da Ucrânia

Yan Boechat

Colaboração para UOL, em Novoluganske (Ucrânia)

21/02/2022 04h00Atualizada em 21/02/2022 12h00

Foi no terceiro disparo que as paredes do antigo galpão construído originalmente para ser uma oficina de tratores tremeram. No quinto, uma leve poeira caiu do teto baixo de um quarto escuro onde soldados, jornalistas e um assustado cachorro buscavam abrigo no fim da tarde de sábado. Por quase meia hora, todos ficaram em um estranho silêncio entrecortado pelo som das bombas que pareciam cair cada vez mais perto. Até que uma delas caiu perto demais.

Já fazia algumas horas que as coisas estavam tranquilas em Novoluganske, uma típica cidade industrial dos tempos soviéticos que se transformou em uma frente de batalha entre separatistas apoiados pela Rússia e o Exército Ucraniano, no leste do país. Na manhã do sábado (19), fria e cinzenta, a artilharia dos separatistas já havia matado dois soldados e ferido outros quatro. Um deles, era capitão da unidade que estava sendo atacada.

"Estão ajustando a distância, temos que sair logo daqui", disse, de forma calma e pausada, um oficial do exército ucraniano após um dos disparos de um morteiro de 150 mm pousar a menos de cem metros do antigo galpão. "Você vai no banco do passageiro, você atrás do carona, você atrás do motorista", dizia a ele. "No três, todo mundo corre para suas posições. Um, dois, três, já."

O jipe militar dirigido por um soldado com cara de adolescente cruzou o campo aberto o mais rápido que pode, atravessou canteiros, ignorou buracos causados por disparos anteriores e só parou em uma base militar a alguns quilômetros da linha de frente. O som das bombas que explodia contra o solo congelado do leste da Ucrânia ainda podia ser ouvido, mas agora distante. "Estamos seguros, podem ficar tranquilos", disse o jovem soldado, sem expressar qualquer reação de alívio, medo ou excitação.

As coisas nessa parte da Ucrânia têm sido assim há oito anos, desde que rebeldes apoiados por Moscou decretaram a independência de duas províncias na fronteira com a Rússia, em uma região conhecida como Donbas.

As repúblicas democráticas de Donetsk e Luganske surgiram na esteira da chamada Revolução de Maidan no inverno de 2013 e 2014, quando ucranianos pró-Europa tomaram as ruas de Kiev por meses até conseguir depor o presidente Victor Yanukovich, um aliado leal de Moscou. Logo depois a Rússia anexou a Crimeia e fomentou os movimentos separatistas no leste do país.

A Crise no leste europeu - UOL - UOL
Imagem: UOL

Estamos em guerra há oito anos, esse é um front ativo, mas nesta última semana tudo mudou, não víamos uma atividade militar como essa desde 2016"
Mikhail Drapatiy, general de brigada, pouco antes de as bombas começarem a cair

Pelas contas de Drapatiy, mais de 800 bombas atingiram o território ucraniano entre quarta-feira e a tarde de sábado. "O que mais nos impressiona não é nem a intensidade dos ataques, mas sim o fato de eles estarem ocorrendo ao longo de toda a linha de contato, em todas as posições, não víamos isso há muito tempo", afirmou.

Linha de contato é como os militares ucranianos chamam os quase 400 quilômetros de trincheira que funcionam como a fronteira entre as duas repúblicas separatistas e o resto do país. Desde 2015 não há avanço das tropas, mas os confrontos ocorrem quase diariamente.

Ao longo desses oito anos, quase 15 mil pessoas já perderam a vida aqui e outras dezenas de milhares ficaram feridas, nos dois lados do conflito. Segundo a ONU, cerca de 1,5 milhão de pessoas tiveram que deixar suas casas ao longo da linha de combate.

Não fosse pelos operários que mantêm em operação, em meio às bombas, a velha, poluidora e semidestruída termelétrica de Svitlodarsk, Novoluganske seria uma cidade fantasma como tantas ao longo das centenas de quilômetros das frentes de batalha dessa guerra.

As janelas estilhaçadas nos imensos conjuntos de apartamentos ao melhor estilo soviético mostram que pouca gente decidiu ficar por Novoluganske. "As coisas estavam calmas, há muito tempo não tínhamos bombardeios como esse", contava Irina a um grupo de jornalistas no centro da cidade após uma leva de disparos no fim da tarde de sábado.

"Acho que agora vamos ter guerra novamente"
Irina, moradora de Novoluganske

Apesar de a maior parte das tropas russas ao longo da fronteira com a Ucrânia estar estacionada longe daqui, esse é o ponto de maior tensão na crise atual.

Para muitos analistas militares e de inteligência, Vladimir Putin pretende usar os separatistas de Donetsk e Luganske como justificativa para — senão invadir — pressionar a Ucrânia e o Ocidente. A Rússia nega.

"Eles estão nos provocando para ter uma desculpa para nos atacar com força total, mas nós não estamos revidando, não estamos sendo os agressores, estamos apenas defendendo nosso território", disse ao UOL David Arakhamia, um deputado ucraniano e integrante do partido do presidente Volodimir Zelensky.

A poucos quilômetros de Novoluganske, nas áreas dominadas pelos separatistas, o discurso era diferente. No último sábado o presidente da autoproclamada República Popular de Donetsk, Denis Pushilin, convocou todos os homens com idades entre 18 anos e 55 anos a pegar em armas.

De acordo com ele, o exército ucraniano iniciou uma ofensiva contra os separatistas e se prepara para retomar os territórios. Um dia antes, Pushilin, com o apoio de Moscou, ordenou a evacuação de 700 mil mulheres, idosos e crianças para a Rússia, afirmando que havia o risco de um genocídio por parte de grupos militares ucranianos de ultra direita.

"Eu apelos a todos os homens que peguem em armas para defender suas famílias, suas mulheres, suas crianças, suas mães", disse ele em um vídeo distribuído nas redes sociais e amplificado pela imprensa russa.

A guerra de versões no leste da Ucrânia replica a retórica do presidente americano Joe Biden, dos líderes europeus e do presidente Vladimir Putin. Por um lado, encontra eco nos jovens ucranianos, que sonham em se integrar a União Europeia. Por outro, toca fundo nos russos étnicos do leste do país, nostálgicos dos tempos em que a Rússia era uma potência mundial e o Estado encarregava-se de praticamente tudo.

Onda nacionalista

Em Kiev, a quase 700 quilômetros aqui das frentes de batalha, a onda nacionalistas cresce na mesma proporção com que as bombas são disparadas. Foi exatamente em 20 de fevereiro de 2014 que a Revolução de Maidan chegou ao seu ápice, quando forças de segurança do país mataram mais de 80 manifestantes no centro da capital.

"Eu perdi amigos, me feri, estamos em guerra há oito anos, mas tudo valeu a pena e estou disposto a lutar até o fim", disse emocionado à reportagem Valerii Ilchuk, 42, um "veterano" dos protestos de 2013 e 2014.

Não viemos até aqui para desistir, queremos ser um país independente e vamos resistir se eles invadirem"
Valerii Ilchuk,que participou de protestos de 2013 e 2014

Apesar de todo o ímpeto nacionalista, a capital ucraniana vive dias de aparente tranquilidade.

Na última sexta-feira à noite os bares e os restaurantes da cidade estavam cheios. Pela avenida Khreshchatyk, no centro da cidade, as mulheres desfilavam com seus casacos de pele de raposa sem nenhum temor de críticas. Nos supermercados, não havia nenhum sinal de medo. Apenas os estrangeiros deixaram a cidade, seguindo as recomendações de suas embaixadas. Na Praça da Independência, uma multidão de jornalistas se espremia para fazer entradas ao vivo para diferentes países do mundo.

Em Novoluganske, o sábado terminou com uma chuva fina, que ora ameaçava se tornar neve, ora ameaçava virar gelo. Nas ruas esburacadas dessa cidadezinha triste e cinza, não havia carros circulando, nem gente caminhando, nem bichos em busca de comida. Num dos poucos mercadinhos abertos, a atendente, idosa, se recusava a conversar com os tradutores dos curiosos jornalistas. Dizia apenas que tinha que fechar porque os bombardeios eram mais intensos a noite.

"Estou cansada, deixem-me ir" disse, em russo, antes de fechar seu mercadinho e sumir por um conjunto de prédios num passo apressado.