Amanda Cotrim

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Reportagem

Mercosul terá brasileira 'feminista e antirracista' nos Direitos Humanos

O Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos (IPPDH) do Mercosul, com sede em Buenos Aires, terá a primeira brasileira como diretora do órgão pelos próximos dois anos. Andressa Caldas, que será empossada nesta segunda-feira (19), afirmou em entrevista à coluna que os "desafios são gigantes" e que assumirá o posto com uma perspectiva brasileira, feminista e antirracista para "evitar retrocessos na região e promover o diálogo acima de tudo".

Vinculado ao Mercosul, o IPPDH foi criado há 15 anos, mas ainda é desconhecido do grande público. Um dos objetivos da nova diretora é justamente dar mais visibilidade aos acordos e políticas públicas de direitos humanos dos países do bloco.

Nascida em Curitiba, Andressa é advogada e atua com direitos humanos há 26 anos. Em 2014, prestou concurso público para trabalhar no Departamento de Relações Internacionais do IPPDH. Foi quando se mudou para Buenos Aires, em 2015, com os dois filhos.

Ser mãe influenciou na decisão de mudar o rumo profissional e deixar de trabalhar em organizações de direitos humanos para passar a atuar "do outro lado", como ela definiu o trabalho dos Estados na criação de políticas públicas que previnam as violações a esses direitos. "Trabalhar com direitos humanos é extremamente perigoso no Brasil e na região", disse.

Veja a entrevista da nova diretora ao UOL.

Qual será a prioridade da sua gestão?

Essa será uma gestão brasileira, feminista e antirracista à frente do IPPDH, de uma pessoa que se construiu como militante de direitos humanos, que vem da sociedade civil. Dito isso, é importante destacar que o combate à discriminação racial é o que de melhor o Brasil pode contribuir com os outros países da região. Também estou comprometida com a participação social para a construção de políticas públicas de direitos humanos. Meu principal objetivo é identificar as fortalezas de cada país que participa do Mercosul.

Quais contribuições dos demais países do bloco serão prioridade na sua gestão?

Na Argentina, temos o país de referência em política de memória, verdade e justiça, que hoje em dia atravessa todos os setores da sociedade e está incorporada à cultura do país.

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O Paraguai criou uma tecnologia inovadora que monitora e organiza as recomendações internacionais sobre os direitos humanos, disponível para todos os países que a incorporam, deixando o trabalho mais rápido e eficiente.

O Uruguai é vanguarda no que tange ao direito ao cuidado, tirando da invisibilidade esse trabalho que é tão "feminilizado", que é o cuidado das crianças, de idosos, de pessoas com deficiência, por exemplo.

O Brasil, como mencionei, tem como referência a política antirracista, mas podemos citar também a participação da sociedade na construção das políticas públicas, com as conferências nacionais e municipais. Temos também o SUS (Sistema Único de Saúde), que é referência mundial no direito à saúde.

E como bloco?

Eu destacaria a nossa política migratória. O acordo do Mercosul é um avanço para a região, que permite que tenhamos livre circulação e direito a permanência nos países que compõem o bloco, o que nos integra. Mesmo que alguns governos tenham uma interpretação diferente, as conquistas de direitos humanos são políticas de Estado. E o nosso papel é o diálogo e a prevenção para evitar retrocessos.

Há uma forte discussão na sociedade civil tanto no Uruguai como na Argentina sobre a invisibilidade de pessoas negras nesses países. É muito comum ouvir de argentinos que não há negros no país.

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É uma falácia dizer que não existem negros na Argentina. Estou conectada com organizações de migrantes, sou imigrante, e sei que na Argentina existe um processo muito arraigado de racismo, principalmente a não brancos, sul-americanos.

Andressa Caldas: 'Será uma gestão de alguém que se construiu como militante de direitos humanos'
Andressa Caldas: 'Será uma gestão de alguém que se construiu como militante de direitos humanos' Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Qual é o papel do Instituto de Direitos Humanos do Mercosul nesse sentido?

As organizações sociais fazem um trabalho fundamental de enfrentamento e fiscalização, monitoramento e denúncia sobre as violações aos direitos humanos. O Mercosul vem ocupar um lugar diferente e até então vazio, mas muito importante, que é o de criação e cooperação técnico-política para os estados e organizações sociais na construção de políticas públicas que possam prevenir futuras violações e identificar os problemas. É uma relação horizontal e não hierárquica. Ou seja, não fazemos um ranking de qual país é o exemplo em políticas públicas de direitos humanos e qual não é. Nosso trabalho foca no consenso, no diálogo, para identificar os progressos de cada estado, mas também suas debilidades.

Sendo a prevenção um dos motes do IPPDH, como sua gestão avalia o cenário da região, considerando países cujos governos têm posicionamentos ideológicos diversos sobre o tema dos direitos humanos?

Em 2024, o Mercosul vai completar 33 anos de uma construção. É importante dizer que não é a primeira vez dentro do bloco que temos uma correlação de forças de sentidos ideológicos distintos e, quem sabe, até opostos. Nenhum presidente de países do Mercosul anunciou que sairá do bloco. Pelo contrário, [Javier] Milei [presidente da Argentina] afirmou que quer estar no Mercosul. E, nesse pacote, também estão as políticas públicas de direitos humanos.

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Eu me reuni com o atual secretário de direitos humanos da Argentina, Alberto Banos [antes de Milei assumir, a pasta tinha status de ministério], e a conversa vem nesse sentido, de com o que a gente pode cooperar para cada um dos governos.

Como os tratados internacionais, a exemplo do Mercosul, contribuem para a defesa e o progresso dos direitos humanos?

Eles garantem mecanismos para que seja mais difícil a implementação de políticas restritivas, repressivas e recessivas dos direitos humanos. É uma costura política tanto com os Estados como com a sociedade civil. Gosto de dialogar e, nesse tipo de desafio, nesse contexto latino-americano, é muito importante abrir portas e janelas, e não fechá-las.

Com quais pautas os governos estão trabalhando e que demandam o instituto atualmente?

Estamos iniciando um diagnóstico sobre a saúde mental de crianças e adolescentes no pós-pandemia —que é um tema super importante, um legado negativo com o qual estamos lidando— e o que podemos aproveitar para atravessar outras situações críticas e de emergência no futuro. Além disso, temos um desafio enorme de mostrar para as pessoas que não pertencem a esse âmbito político, ou seja, a população comum, que o Mercosul existe, que ele é um bloco importantíssimo para a região.

A suspensão e possível nova adesão da Venezuela é uma pauta atual?

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Não é uma pauta dos países atualmente, mas acredito que já é o momento de discutir essa suspensão. Além disso, a incorporação da Bolívia é algo incrível. Como estado associado, assim como Chile, Equador, Peru e Colômbia, já se trabalhava com a Bolívia, mas poder ter o país em breve como membro é muito animador, porque amplia o horizonte de como o sul contribui com o sul. Um caminho no qual o Mercosul avançou e que tem grande potencial de levar nossa experiência para países fora do bloco.

Vivemos um momento histórico em que parece que essa expressão se tornou abstrata e vaga para muitos: qual é o sentido de direitos humanos que você e o IPPDH defendem?

Mesmo a gente tendo uma Declaração Universal de Direitos Humanos, que diz especificamente o que são os direitos humanos da perspectiva legislativa e política, sabemos que é um campo em disputa na vida prática. E essa disputa é super legítima. Enquanto isso, o papel dos Estados é se basear no que dizem os tratados e convenções internacionais de direitos humanos. Por outro lado, a construção de direitos humanos não se dá em Genebra e Nova York, mas no dia a dia, a partir da apropriação pela sociedade. A pior coisa que pode acontecer é as pessoas verem os direitos humanos como um obstáculo ou algo a ser combatido "porque é coisa de defender bandido", como pensam no Brasil. Algo que, na Argentina, até agora, não se apresentou.

Quais os atores fundamentais que precisam dialogar entre si, e como você propõe isso na sua gestão?

Estado, sociedade civil e as corporações. Essa última sempre fica de fora e é fundamental nesse diálogo. Chamar o setor empresarial, não só para criar iniciativas de responsabilidade social, mas para discutir seriamente a responsabilidade legal, jurídica e econômica das grandes empresas quando atuam como violadores de direitos humanos. Esse ator é fundamental para discutir democracia e direitos humanos.

Você é a segunda mulher a assumir a direção do IPPDH em 15 anos, e a primeira brasileira. O que representa, na sua avaliação, ter uma mulher à frente das políticas públicas de direitos humanos do Mercosul?

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Eu estou honrada e orgulhosa pela indicação do governo brasileiro. Tem um desafio gigante pela correlação de força da nossa região, mas ao mesmo tempo estou confiante por estar em uma gestão pública que tem um olhar feminino e feminista e destaca as questões de gênero. Temos uma equipe majoritariamente feminina, diversa, de outras nacionalidades, e isso só enriquece o trabalho. É uma liderança que se assume como mulher e como feminista, nesse momento em que o diálogo, o encontro e a busca de consenso são tão importantes.

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