Argentina retrocede em 3 meses de Milei, que aposta no piorar para melhorar
Num elevador antigo, desses que o usuário precisa abrir e fechar a porta, muito comuns nos prédios de Buenos Aires, um trio de mulheres sobe até o décimo quinto andar. Na portaria, avisaram que vão a uma agência que contrata pessoas para fazer faxina.
Dentro do elevador, elas se olham timidamente até que uma pergunta: "Vocês também estão aqui para trabalhar na agência?". As duas respondem que sim. "Espero que [a empresa] seja honesta. Não a conheço". "Eu conheço. Trabalhei por 20 anos com eles. Estou voltando porque agora, com a situação [econômica], temos que trabalhar o dobro". "Tá difícil", interrompe uma. "Sim, mas vai melhorar. Fizeram muita bagunça todos esses anos, temos que aguentar", disse outra antes de chegar ao andar de destino.
'Piorar para melhorar'
"Piorar para melhorar" é o lema que está na ponta da língua do governo e dos apoiadores de Javier Milei. Quando assumiu, Milei disse que a Argentina estava zerada —fruto, segundo ele, da herança dos governos kirchneristas, e que os próximos meses seriam duros, mas necessários, porque a situação iria piorar para só depois melhorar.
Nesses três meses de mandato, os argentinos sentem que foram atingidos por um rolo compressor: mudanças drásticas, em um tempo recorde. "É como se a gente tivesse levado um golpe no ringue de boxe, sem proteção", comparou Alejandro, 45, que é porteiro em um prédio no centro da capital.
A lista de ações do governo Milei até aqui é imensa. Mas as boas notícias são poucas. O governo se orgulha de ter conquistado superávit em fevereiro. No entanto, analistas econômicos contra-argumentam que o preço da redução de gastos públicos foi alto para a população, principalmente a mais vulnerável socioeconomicamente. Prova disso são os números da pesquisa mais recente sobre a pobreza no país, divulgados pela Universidade Católica da Argentina (UCA). Eles revelaram que a pobreza atinge 57% da população, e 15% dela vive na indigência.
Preços de primeiro mundo e salários de terceiro mundo
Os dados gritam diante dos olhos de quem caminha pelas ruas de Buenos Aires, mesmo nos pontos turísticos, com mais e mais pessoas dormindo nas ruas e pedindo esmolas.
Ao mesmo tempo, por causa de um mega decreto vigente desde dezembro, os subsídios de transporte, luz e gás foram reduzidos, e os preços de produtos e serviços foram liberados para sofrer reajuste, sem nenhuma regulação do Estado.
O resultado é uma Argentina "com preços de primeiro mundo e salários de terceiro. Como qualquer outro país da América do Sul", como comentou o cartunista brasileiro Adão Iturrusgarai, que mora na Argentina há mais de 15 anos.
A Argentina chegou lá: preços de Primeiro Mundo com salários de Terceiro. Como qualquer outro país da América do Sul.
-- Adão Iturrusgarai (@aiturrusgarai) March 5, 2024
Além de liberar preços, o governo derrubou diversas leis, como a de aluguel. O megadecreto, com mais de 300 pontos, também permite a privatização de empresas e que universidades públicas cobrem mensalidade de estrangeiros sem residência permanente (a maioria dos estrangeiros tem residência provisória e só depois pode conseguir permanente; brasileiros são exceção, pois podem pedir diretamente a residência permanente).
Recentemente, o governo anunciou que o Inadi (instituto nacional contra discriminação, racismo e xenofobia) será fechado por ser "inútil e cabide de emprego". Também proibiu a linguagem neutra em todo o governo.
'O presidente está certo'
Nas ruas da capital, um cartaz em frente a um kiosco (loja que vende guloseimas e cigarros) é direto: "Os cigarros aumentaram 30%. Reclame com Javier Milei". Do lado de dentro do estabelecimento, o jovem Franz, de 23 anos, que é chileno e migrou há dois anos, ri e diz que a sua chefe pediu para escrever o cartaz porque "as pessoas ficam revoltadas com os aumentos e descontam na gente".
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Quero receberA reportagem pergunta se a chefe dele apoia Milei, e ele diz que não. "Mas eu, sim. Acho que o presidente está certo. O país estava na lama. É preciso piorar para melhorar. Eu acredito que, depois da tempestade, vem a bonança", disse o jovem que veio estudar artes na Argentina. Ele defende que o governo cobre mensalidade de estrangeiros.
No campo político, Milei mantém sua aliança com o grupo político de Maurício Macri e Patricia Bullrich, candidata que ficou em terceiro lugar nas eleições e assumiu como Ministra da Segurança. No entanto, o presidente ainda não conseguiu emplacar nenhum projeto no Congresso.
Seu desafio mais ousado foi a Lei de Bases, conhecida como lei ônibus por sua extensão e pela votação ser de uma vez. Milei teve maioria na votação geral da lei, mas o oficialismo recusou na votação dos artigos específicos quando viu que seria derrotado. Paralelamente, o Mega Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) segue vigente e ainda não foi discutido no Congresso, única instituição com poder para derrubar o decreto.
A antipolítica de Milei
A antipolítica presente no discurso de Javier Milei produz dois efeitos colaterais: de um lado, ele inflama os apoiadores que o elegeram, principalmente, por sua promessa de "acabar com os privilégios da casta política". De outro, Milei não se estabelece como um sujeito do diálogo frente às demais forças políticas, como os deputados e os governadores das províncias argentinas.
Foi o que aconteceu na briga entre Milei e os governadores, que exigiram o repasse de recursos da nação que, por lei, deveriam ser destinados aos estados. O governador da província de Chubut, na Patagônia, Ignacio Torres, chegou a ameaçar o presidente dizendo que, se ele não fizesse o repasse, as províncias do sul não entregariam petróleo e gás para o restante do país. Chubut e Neuquén são as maiores produtoras de petróleo da Argentina.
Uma boa notícia foi o recuo no aumento de 30% nos salários de deputados e senadores, que havia sido autorizado pela vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, que também é presidente do Senado, e pelo presidente da Câmara, Martin Menem. A notícia "caiu mal", principalmente num momento em que os mais pobres sofrem os ajustes do governo, escancarando a contradição sobre quem, afinal, seria a verdadeira casta. Milei determinou que o aumento fosse suspenso.
Protestos, greves e inflação dão tom
Paralelamente, nas ruas, os protestos só aumentam, mesmo diante do protocolo antiprotestos de rua, que proíbe que as manifestações obstruam vias públicas, permitindo que a polícia reprima manifestantes que desobedecerem a norma.
Em três meses, o governo se deparou com uma greve geral convocada pela maior central sindical do país, a CGT (Confederação Geral do Trabalho), além de greves paralelas no setor de transporte e aeroportos. Até o fim do mês, mais uma greve geral está sendo convocada pelas centrais sindicais.
A Argentina atualmente acumula inflação anual de 254%. Nos dois primeiros meses do governo Milei, os preços subiram 45%, e o presidente desvalorizou o peso em mais de 50%.
No mês passado, o ministro da Economia da Argentina, Luis Caputo, afirmou que o salário mínimo teria ajuste e passaria de 155 mil pesos (R$ 915, na cotação atual) para 180 mil (R$ 1.062) em fevereiro e 202 mil (R$ 1.192) em março. Caputo também pediu paciência aos argentinos e afirmou que o esforço da população diante do ajuste não seria em vão.
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