Amanda Cotrim

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Reportagem

Argentina retrocede em 3 meses de Milei, que aposta no piorar para melhorar

Num elevador antigo, desses que o usuário precisa abrir e fechar a porta, muito comuns nos prédios de Buenos Aires, um trio de mulheres sobe até o décimo quinto andar. Na portaria, avisaram que vão a uma agência que contrata pessoas para fazer faxina.

Dentro do elevador, elas se olham timidamente até que uma pergunta: "Vocês também estão aqui para trabalhar na agência?". As duas respondem que sim. "Espero que [a empresa] seja honesta. Não a conheço". "Eu conheço. Trabalhei por 20 anos com eles. Estou voltando porque agora, com a situação [econômica], temos que trabalhar o dobro". "Tá difícil", interrompe uma. "Sim, mas vai melhorar. Fizeram muita bagunça todos esses anos, temos que aguentar", disse outra antes de chegar ao andar de destino.

'Piorar para melhorar'

Homem dorme na rua do centro Buenos Aires
Homem dorme na rua do centro Buenos Aires Imagem: Amanda Cotrim/UOL

"Piorar para melhorar" é o lema que está na ponta da língua do governo e dos apoiadores de Javier Milei. Quando assumiu, Milei disse que a Argentina estava zerada —fruto, segundo ele, da herança dos governos kirchneristas, e que os próximos meses seriam duros, mas necessários, porque a situação iria piorar para só depois melhorar.

Nesses três meses de mandato, os argentinos sentem que foram atingidos por um rolo compressor: mudanças drásticas, em um tempo recorde. "É como se a gente tivesse levado um golpe no ringue de boxe, sem proteção", comparou Alejandro, 45, que é porteiro em um prédio no centro da capital.

A lista de ações do governo Milei até aqui é imensa. Mas as boas notícias são poucas. O governo se orgulha de ter conquistado superávit em fevereiro. No entanto, analistas econômicos contra-argumentam que o preço da redução de gastos públicos foi alto para a população, principalmente a mais vulnerável socioeconomicamente. Prova disso são os números da pesquisa mais recente sobre a pobreza no país, divulgados pela Universidade Católica da Argentina (UCA). Eles revelaram que a pobreza atinge 57% da população, e 15% dela vive na indigência.

Preços de primeiro mundo e salários de terceiro mundo

Homem dorme no metrô de Buenos Aires
Homem dorme no metrô de Buenos Aires Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Os dados gritam diante dos olhos de quem caminha pelas ruas de Buenos Aires, mesmo nos pontos turísticos, com mais e mais pessoas dormindo nas ruas e pedindo esmolas.

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Ao mesmo tempo, por causa de um mega decreto vigente desde dezembro, os subsídios de transporte, luz e gás foram reduzidos, e os preços de produtos e serviços foram liberados para sofrer reajuste, sem nenhuma regulação do Estado.

O resultado é uma Argentina "com preços de primeiro mundo e salários de terceiro. Como qualquer outro país da América do Sul", como comentou o cartunista brasileiro Adão Iturrusgarai, que mora na Argentina há mais de 15 anos.

Além de liberar preços, o governo derrubou diversas leis, como a de aluguel. O megadecreto, com mais de 300 pontos, também permite a privatização de empresas e que universidades públicas cobrem mensalidade de estrangeiros sem residência permanente (a maioria dos estrangeiros tem residência provisória e só depois pode conseguir permanente; brasileiros são exceção, pois podem pedir diretamente a residência permanente).

Recentemente, o governo anunciou que o Inadi (instituto nacional contra discriminação, racismo e xenofobia) será fechado por ser "inútil e cabide de emprego". Também proibiu a linguagem neutra em todo o governo.

'O presidente está certo'

Nas ruas da capital, um cartaz em frente a um kiosco (loja que vende guloseimas e cigarros) é direto: "Os cigarros aumentaram 30%. Reclame com Javier Milei". Do lado de dentro do estabelecimento, o jovem Franz, de 23 anos, que é chileno e migrou há dois anos, ri e diz que a sua chefe pediu para escrever o cartaz porque "as pessoas ficam revoltadas com os aumentos e descontam na gente".

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Cartaz em 'kiosco' de Buenos Aires: Os cigarros aumentaram 30%. Reclame com Javier Milei
Cartaz em 'kiosco' de Buenos Aires: Os cigarros aumentaram 30%. Reclame com Javier Milei Imagem: Amanda Cotrim/UOL

A reportagem pergunta se a chefe dele apoia Milei, e ele diz que não. "Mas eu, sim. Acho que o presidente está certo. O país estava na lama. É preciso piorar para melhorar. Eu acredito que, depois da tempestade, vem a bonança", disse o jovem que veio estudar artes na Argentina. Ele defende que o governo cobre mensalidade de estrangeiros.

No campo político, Milei mantém sua aliança com o grupo político de Maurício Macri e Patricia Bullrich, candidata que ficou em terceiro lugar nas eleições e assumiu como Ministra da Segurança. No entanto, o presidente ainda não conseguiu emplacar nenhum projeto no Congresso.

Seu desafio mais ousado foi a Lei de Bases, conhecida como lei ônibus por sua extensão e pela votação ser de uma vez. Milei teve maioria na votação geral da lei, mas o oficialismo recusou na votação dos artigos específicos quando viu que seria derrotado. Paralelamente, o Mega Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) segue vigente e ainda não foi discutido no Congresso, única instituição com poder para derrubar o decreto.

A antipolítica de Milei

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A antipolítica presente no discurso de Javier Milei produz dois efeitos colaterais: de um lado, ele inflama os apoiadores que o elegeram, principalmente, por sua promessa de "acabar com os privilégios da casta política". De outro, Milei não se estabelece como um sujeito do diálogo frente às demais forças políticas, como os deputados e os governadores das províncias argentinas.

Foi o que aconteceu na briga entre Milei e os governadores, que exigiram o repasse de recursos da nação que, por lei, deveriam ser destinados aos estados. O governador da província de Chubut, na Patagônia, Ignacio Torres, chegou a ameaçar o presidente dizendo que, se ele não fizesse o repasse, as províncias do sul não entregariam petróleo e gás para o restante do país. Chubut e Neuquén são as maiores produtoras de petróleo da Argentina.

Uma boa notícia foi o recuo no aumento de 30% nos salários de deputados e senadores, que havia sido autorizado pela vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, que também é presidente do Senado, e pelo presidente da Câmara, Martin Menem. A notícia "caiu mal", principalmente num momento em que os mais pobres sofrem os ajustes do governo, escancarando a contradição sobre quem, afinal, seria a verdadeira casta. Milei determinou que o aumento fosse suspenso.

Protestos, greves e inflação dão tom

Integrantes de movimentos sociais protestam contra a escassez de alimentos nos refeitórios sociais
Integrantes de movimentos sociais protestam contra a escassez de alimentos nos refeitórios sociais Imagem: Tomas Cuesta - 23.fev.24/AFP

Paralelamente, nas ruas, os protestos só aumentam, mesmo diante do protocolo antiprotestos de rua, que proíbe que as manifestações obstruam vias públicas, permitindo que a polícia reprima manifestantes que desobedecerem a norma.

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Em três meses, o governo se deparou com uma greve geral convocada pela maior central sindical do país, a CGT (Confederação Geral do Trabalho), além de greves paralelas no setor de transporte e aeroportos. Até o fim do mês, mais uma greve geral está sendo convocada pelas centrais sindicais.

A Argentina atualmente acumula inflação anual de 254%. Nos dois primeiros meses do governo Milei, os preços subiram 45%, e o presidente desvalorizou o peso em mais de 50%.

No mês passado, o ministro da Economia da Argentina, Luis Caputo, afirmou que o salário mínimo teria ajuste e passaria de 155 mil pesos (R$ 915, na cotação atual) para 180 mil (R$ 1.062) em fevereiro e 202 mil (R$ 1.192) em março. Caputo também pediu paciência aos argentinos e afirmou que o esforço da população diante do ajuste não seria em vão.

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