A Bahia do preto Dorival Caymmi resiste, e "está viva ainda lá"
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Um dos destaques do festival de documentários musicais In-Edit Brasil 2020 é "Dorivando Saravá, O Preto Que Virou Mar", filme de Henrique Dantas, que homenageia a rica produção de Dorival Caymmi (1914-2008), a partir das heranças africanas e afrobrasileiras ressaltadas pelo compositor baiano.
Por meio de depoimentos de amigos, pesquisadores e artistas como Moraes Moreira, Gilberto Gil, Tom Zé, Jussara Silveira, Tiganá Santana e BNegão, o documentário destaca como os temas do cotidiano negro foram poetizados e popularizados pelas canções de Caymmi.
São protagonistas de suas músicas e também de suas pinturas (sim, ele também era pintor), os pescadores do mar da Bahia, as vendedoras de alimentos que mercavam pelas ruas da cidade e as entidades do candomblé, exaltadas de forma pioneira e respeitosa.
No filme, os traços de negritude de Caymmi são evidenciados também nos preconceitos ocasionados pela sua origem étnica.
Exemplos de como a sociedade enxergava o "preto Caymmi" são apontados no filme, como a rejeição à entrada na Academia de Letras da Bahia do autor de pérolas do cancioneiro musical brasileiro e o estereótipo de preguiça atribuído ao artista, como resquícios da escravização e do racismo científico.
Uma lagoa escura, arrodeada de areia branca
Em um dos depoimentos é lembrada a tristeza de Caymmi com o tratamento dado a um dos locais de Salvador tão bem cantado por ele, a Lagoa de Abaeté, no mítico bairro de Itapuã, antiga vila de pescadores na orla da cidade.
O aborrecimento de Caymmi com o descuido com a "lagoa escura, arrodeada de areia branca" era tanto que o artista não fazia questão de visitar o Abaeté nas vezes em que visitava Salvador (o compositor morava no Rio de janeiro desde 1938 até sua morte).
Se vivo estivesse, Caymmi teria motivos de tristeza ainda maiores. Mas também se orgulharia com os exemplos de resistência que a cultura negra continua a inspirar na Bahia, em especial no bairro de Itapuã.
É de lá, das margens da Lagoa do Abaeté, o grupo As Ganhadeiras de Itapuã, senhoras que cantam e dançam, celebrando a história das mulheres negras — escravizadas ou libertas — que circulavam pelas ruas, comercializando comidas, frutas e quitutes típicos da Bahia, como o acarajé, o abará e a cocada.
A prática das "ganhadeiras" ou "escravas de ganho", imortalizada em canções como "Acaçá" e "A Preta do Acarajé" (esta gravada com Carmem Miranda), inspirou o grupo que foi tema do desfile da Viradouro em 2020 e ajudou a escola de samba a levar o título de campeã do Carnaval do Rio de Janeiro deste ano.
O que Caymmi cantou, hoje a intolerância ataca
Em Itapuã também está um dos símbolos da religiosidade de matriz africana que tanto inspirou Caymmi. O busto de Mãe Gilda de Ogum, no Parque do Abaeté, é um dos três únicos monumentos na cidade que homenageiam lideranças do candomblé.
A presença da estátua documenta o triste fenômeno da intolerância religiosa que, por certo, revoltaria o compositor de clássicos como "Oração à Mãe Menininha", "Caminhos do Mar (Rainha do Mar)", "Canto de Nanã" e tantas canções que, como destaca Gilberto Gil no documentário, fez ressoar o nome dos orixás nas festas populares e nas emissoras de rádio, de forma pioneira.
Em 2000, a Iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, nas imediações da Lagoa do Abaeté, foi vítima de agressões morais promovidas pelo jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que estampou uma foto da líder religiosa, acusando-a de charlatanismo.
Os familiares venceram um processo judicial contra a Iurd, alegando que o fato abalou a saúde de Mãe Gilda, ocasionando o seu falecimento em 21 de janeiro de 2000. Desde 2007, a data tornou-se o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Em julho deste ano, o busto sofreu mais uma depredação motivada pelo ódio religioso, que ainda tem gerado perseguição aos adeptos do candomblé e invasões a terreiros.
Estação de esgoto, mais um capítulo na vida de Abaeté
Neste momento, o talento de Caymmi faria muita diferença na luta travada pela comunidade de Itapuã pela preservação da Lagoa do Abaeté contra aquela que parece ser a pior das ameaças. O Governo do Estado da Bahia decidiu construir uma estação de esgoto às margens da lagoa.
Os moradores protestam pelo fato de a lagoa, além de ser um patrimônio cultural da Bahia, estar localizada em uma Área de Preservação Ambiental (APA) e apontam outras alternativas.
A Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder), responsável pela obra, alega que a estação elevatória faz parte de um plano de requalificação da região e que o equipamento funcionará priorizando questões de segurança, a partir de estudos técnicos.
Os protestos dos moradores sensibilizaram artistas como Caetano Veloso, Jorge Vercillo, Margareth Menezes e Guilherme Arantes, que utilizaram suas redes sociais para condenar o projeto e pedir melhorias para o local.
Com transformações culturais e resistências de certas práticas, a Bahia negra cantada por Caymmi persevera em meio às novas e velhas manifestações do racismo, com lutas cotidianas. Pois, como ele bem cantou, em composição em parceria com seu amigo Jorge Amado: "vida de negro é difícil, é difícil como o quê!".
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