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André Santana

Quem se importa com os artistas excluídos pela Fundação Palmares?

                                 Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, que excluiu intelectuais e políticos da lista de personalidades negras da instituição                              -                                 Divulgação
Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, que excluiu intelectuais e políticos da lista de personalidades negras da instituição Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

03/12/2020 15h10

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O atual presidente da Fundação Cultural Palmares cumpre o papel de chamar atenção para polêmicas enquanto o governo de Jair Bolsonaro não consegue dar respostas para graves situações que afligem o país como o desemprego, a insegurança, o genocídio de corpos negros e uma crise de saúde que já registrou mais de 170 mil mortes, na maioria, pessoas pretas e pobres.

Essa função de desviar o foco do que realmente importa já foi exercida por outros representantes do governo Bolsonaro, como a ministra Damares Alves e o ex-ministro Abraham Weintraub. Sergio Camargo continua a linhagem, desempenhando bem o papel.

A cada semana uma frase de efeito contra as lutas das populações negras, a negação do racismo e a desvalorização da biografia de personalidades negras.

A imprensa, para demonstrar que se importa com o tema, dá destaque às bobagens proferidas por aquele que já provou sua total irrelevância para os caminhos que o Brasil e mundo precisam tomar em direção à desconstrução do racismo.

Martinho comemora retirada do seu nome da lista

O último feito foi a divulgação de artistas excluídos de uma tal lista de homenageados pela Fundação Palmares.

Qual a relevância de receber qualquer reconhecimento por uma instituição desmontada da sua função pública? O que significa ser homenageado por um governo cujo dirigente saúda a memória de torturadores?

O cantor, compositor e escritor Martinho da Vila, um dos excluídos, se disse contente por ter sua imagem desvinculada totalmente desta organização que "deixou de ser nossa".

O governo federal promove ataques a artistas negros e quem se importa com isso? Como o Brasil trata esses artistas? Como tem sido a valorização desta arte que tantas contribuições oferecem à cultura nacional?

Ilê Aiyê - André Frutuoso - André Frutuoso
Simbolo da cultura negra de Salvador, bloco afro Ilê Aiyê é ignorado pelo poder público
Imagem: André Frutuoso

Pandemia estrangula artistas negros

Salvador, cidade fortemente marcada pelas heranças africanas, poderia ajudar a dar essas respostas.

Na última lista dos banidos pela Fundação Palmares estão baianos como Gilberto Gil, o escultor Emanoel de Araújo, diretor do Museu Afro-Brasil de São Paulo, e o presidente do bloco afro Ilê Aiyê, Antônio Carlos Vovô.

A dificuldade que os blocos afro encontram para manter suas atividades e os riscos, a cada Carnaval, da não-participação na festa por falta de apoio, demonstram que o problema não está concentrado na esfera federal.

O próprio Ilê Aiyê passa por um risco de perda da sua sede própria, em Salvador, onde desenvolve projetos sociais e de educação, a exemplo de uma escola comunitária gratuita e oficinas de músicas, conforme já informamos aqui nesta coluna.

A pandemia do coronavírus obrigou a suspensão de shows e atividades artísticas ao longo do ano, gerando uma situação de muita dificuldade para a classe artística.

Mais grave ainda é a realidade daqueles que historicamente já são discriminados pelo mercado das artes e eventos.

Tambores do Olodum - João Pires/Divulgação - João Pires/Divulgação
Tambores do Olodum atraem visitantes do mundo inteiro a Salvador
Imagem: João Pires/Divulgação

Réveillon de Salvador terá Ivete e Gusttavo Lima

Denunciamos aqui também a situação de capoeiristas que estavam vivendo da doação de cestas básicas, por conta da suspensa das aulas e apresentações públicas.

Por outro lado, alguns artistas conseguiram, em meio à crise, manter sua exposição nos meios de comunicação, altos cachês para campanhas publicitárias e a realização de lives altamente patrocinadas.

O poder público, quando pode intervir de algum modo nesta dinâmica, faz em apoio aos artistas já valorizados pelo mercado.

Esta semana, o prefeito de Salvador ACM Neto anunciou a festa de Réveillon da cidade. Será realizada uma live (sim, mais uma!) com dois artistas que, nas palavras do gestor municipal, são as maiores atrações do país: a baiana Ivete Sangalo e o mineiro Gusttavo Lima.

"A ideia é manter a festa viva mesmo sem a realização convencional. Depois de um ano de tantas dificuldades, desafios a serem superados e problemas, nós da prefeitura tínhamos que pensar de maneira criativa e diferente em fazer uma festa, em pensar em Salvador como um destino comentado no mundo".

Criativa? Diferente?

A julgar que Ivete vem realizando a contagem regressiva na capital baiana há quase uma década e que ambos os artistas foram responsáveis por lives, ao longo deste ano, com muitos patrocínios e exibidas nas principais emissoras do país e plataformas digitais, qual é mesmo a novidade?

Nem os cachês de R$ 1 milhão, que de acordo com ACM Neto serão pagos pela iniciativa privada, devem ser novidades na carreira dos artistas.

Também não é nova a crítica de desvalorização dos artistas locais, em especialmente da cultura afro, na programação da festa de Réveillon e no próprio Carnaval de Salvador.

Forte São Marcelo - Márcio Filho / MTUR                             - Márcio Filho / MTUR
Réveillon de Salvador: show no forte São Marcelo sem público, com exceção dos quem puderem utilizar lanchas e escunas
Imagem: Márcio Filho / MTUR

Na cidade que já ofereceu ao mundo a capoeira, o samba, artistas como Margareth Menezes, Olodum, o próprio Ilê Aiyê e tantas e tantos talentos de pele escura, a escolha pela branquitude nos palcos não pode ser dissociada do racismo institucional.

Do alto da sua arrogância política, inflada pela vitória do seu candidato à sucessão ainda no primeiro turno das eleições municipais, ACM Neto chamou de "invejosos" e pessoas com "dor de cotovelo" os críticos da escolha das atrações da virada deste ano.

Quem se importa?

Para muitos, os cachês e a visibilidade da festa — que será transmitida por emissoras de televisão para todo o país — seriam uma oportunidade para auxiliar os artistas e grupos da cidade que tiveram suas vidas econômicas devastadas pela pandemia.

Muitos estão sem qualquer perspectiva diante do cancelamento dos ensaios de verão, das festas populares da Bahia e do próprio carnaval.

Tão ruim quanto retirar artistas negros de uma lista de homenagens é não incluí-los na programação de uma grande festa - bem paga - da cidade.

Neste texto cheio de perguntas, me permitam a última delas:

Quem realmente se importa com os artistas negros?