André Santana

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Opinião

Assim como a pequena Marina, estamos todos cansados

A pequena Marina de Almeida, que viralizou nas redes por conta de uma entrevista 'sincerona' que deu para uma TV de Pernambuco, expressa o sentimento de muitos de nós, brasileiros e brasileiras, nesta metade de 2023: "estamos todos cansados, acabados".

A fala honesta da menina mostra o desafio que a educação brasileira enfrenta para despertar, em jovens e crianças, o interesse pela convivência no ambiente escolar, ainda mais depois de um período forçado de confinamento em casa e tentativas de aulas remotas.

Entre os adultos, o ânimo para encarar a rotina exaustiva é comprometido pelos rumos da política brasileira e pela violência cotidiana. Acompanhar notícias sobre esses dois temas "dá preguiça de fazer as coisas" e a vontade é de ficar "jogado na cama".

"A sociedade do cansaço", como nomeou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, até tenta corresponder à cobrança capitalista por produtividade e otimismo. Mas a realidade de injustiças e violências gera o esgotamento físico e sofrimentos psíquicos cada vez mais comuns à nossa época, que jogam por terra as motivações do viver.

O ano começou no Brasil com esperanças

Tal qual a estudante, que iniciou o primeiro dia de volta às aulas toda produzida, também começamos o ano cheios de esperança, renovada não apenas pela atmosfera do recomeço do calendário, mas principalmente pela chegada de um novo governo no Brasil.

Um governo não tão novo assim, mas com uma expectativa bastante diferente da gestão que se arrastava por quatro intermináveis anos que tivemos que enfrentar, além de uma pandemia mundial, um governo de irresponsáveis negacionistas, divulgadores de mentiras e fomentadores do ódio.

Assim, começamos 2023 empolgados, nos enfeitando e nos produzindo para as boas novidades que o ano nos prometia. Tal qual a menina Marina, o Brasil estava bem charmoso desde o dia primeiro do ano, celebrando uma grande festa da diversidade e da democracia.

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Realmente vieram boas novas, especialmente uma postura diferente para tratar nossos povos originários e comunidades tradicionais, com a criação de órgãos de governo e a nomeação de pessoas com trajetória de comprometimento com essas causas.

Também na saúde e no meio ambiente, áreas que padecemos sofrivelmente nos últimos anos, presenciamos a posse da ciência, da razão, da sensibilidade e do bom senso, de profissionais que realmente se dedicam a enfrentar com estudos, observações científicas e diálogos com o mundo os grandes desafios que a vida no planeta oferece aos hospedes bagunceiros, que somos nós, humanos.

Golpe de 8/1 nos despertou da ilusão política

Mas logo na primeira semana do novo ano, precisamente no dia 08, uma tentativa de golpe contra o estado democrático de direito nos despertou da atmosfera de otimismo e nos colocou de cara com desafios ainda não superados.

Temos no Brasil, brasileiros contrários à ideia de nação de direitos e de inclusão. São conterrâneos nossos que preferem o Brasil entregue à barbárie, ao ódio e ao descaso que deixou de evitar mais de 700 mil mortes de brasileiros como nós.

No fundo já sabíamos que não seria tão fácil. Basta ver a quantidade de votos dados por quem queria a continuação do governo do ódio, da fome e da morte.

Não podemos ser inocentes e precisamos compreender que a polarização política e a propaganda eleitoral criaram em nós um excesso de otimismo em relação a essa mudança de governo. Como explica Byung-Chul Han, na busca por corresponder a essa positividade e sem respostas práticas para vivencia-la de fato, a insatisfação e o cansaço nos atingem fortemente.

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Tão ruim quanto enxergar a cara do obscurantismo ainda persistente foi descobrir tão rápido a infiltração dos retrógrados no governo que se iniciou e para o qual apostou-se esperanças. O tal governo de coalizão, que ganhou o nome fantasia de frente ampla pela democracia, absorveu as artimanhas de poder do chamado Centrão, que continuou com ministérios e voz ativa no comando do país.

A fome insaciável desta distorção da política brasileira não para de cobrar por verbas e cargos do novo governo, minando as expectativas de transformação deste cenário político. Além do orçamento público, as grandes vítimas do Centrão têm sido os postos ocupados por mulheres, que nesse governo atingiu um número recorde de representatividade.

A baixa representação feminina no poder é algo que ainda compromete a plena efetivação da nossa democracia, e as mulheres que se lançam ao desafio precisam enfrentar um ambiente político cheio de machismo, gordofobia e transfobia, como o que presenciamos nas sessões das CPI no Congresso, em ataques verbais às deputadas Sâmia Bonfim e Erika Hilton, ambas do PSOL-SP.

O presidente Lula pode tomar uma importante decisão para reverter esse desequilíbrio de gênero no poder do país, se nomear uma mulher para a próxima vaga do STF (Supremo Tribunal Federal).

Depois da posse de mais um homem branco, que representa o topo da pirâmide política, social e econômica do Brasil, há uma cobrança pela escolha de uma mulher e, em especial, negra, que ocupa a base da pirâmide e, portanto, tem a possibilidade de realmente desestabilizar as enrijecidas estruturas de poder e privilégios.

Caso contrário, se Lula nomear um ministro, o governo que prometeu igualdade e diversidade será marcado por um grande retrocesso: ao invés de apenas duas ministras, passaremos a contar com uma única mulher na suprema corte da justiça do país.

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Violência policial, em governos de esquerda e de direita, gera desânimo e revolta

Para completar o clima de tristeza, de desânimo e de cansaço, que tira nossa vontade de vivenciar este país, escorrem pelas nossas vistas, transmitidas diariamente pelas tevês, o sangue derramado nas periferias em operações das forças policiais do Estado brasileiro.

A política de segurança pública no Brasil tem se resumido às operações de alta letalidade em comunidades pobres, quando vidas são eliminadas, e com maior frequência, as vidas negras.

Com a justificativa da 'resistência às abordagens' e 'troca de tiros', essas operações policiais instituem nos territórios onde moram pobres e pretos o julgamento sumário e a pena de morte.

O genocídio contra a população negra nas periferias do Brasil une governos de esquerda e de direita. Os números são alarmantes, tanto em São Paulo, onde o pensamento bolsonarista encontrou refúgio para manter o poder e a disseminação do mal, quanto na Bahia, onde o progressismo petista propagandeia um discurso populista de combate ao atraso e ao extremismo.

Enquanto em São Paulo, cogitam a retirada das câmeras de segurança nos uniformes policiais, mesmo conseguindo reduzir a letalidade das operações após o início do uso pelas tropas, na Bahia, após 16 anos de governos do PT, não há sinais efetivos de que esses equipamentos serão utilizados para responder aos questionamentos sobre excessos de violência e abusos de autoridade por parte da polícia.

As duas correntes de governo, aparentemente opostas, se unem para a eficácia de uma política pública de segurança marcada pelo extermínio de corpos pretos que vivem em áreas de histórico abandono estatal, sem condições mínimas de infraestrutura, sem serviços básicos e dominadas por organizações criminosas que as forças do estado não foram capazes de deter.

Essa é a nossa situação nesta metade do ano de 2023, cansados, acabados, exaustos de injustiças e de ataques à vida com dignidade.

Como a pequena Marina, fazemos um enorme esforço para sair da cama e enfrentar a realidade com as forças que ainda nos restam. Alguns mantêm a indignação e o repúdio, em protestos isolados ou passeatas coletivas e tentativas de constranger os poderosos do país. Outros, tornam-se indiferentes à barbárie cotidiana, sem perspectivas, envolvidos na sobrevivência individual.

Assim seguimos, até que o ano chegue ao fim e, como no último dia de aula, renasça a vontade de nos produzir para a despedida das nossas misérias e para a nova chance que a vida insiste em nos oferecer.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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