André Santana

André Santana

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Salvador é um porto atlântico a abrigar a música negra mundial


Com o show do cantor nigeriano Seun Kuti, nesta sexta-feira, 24, Salvador confirma ser o porto atlântico para abrigar a música negra produzida no mundo.

Neste mês de novembro, a cidade mais negra fora do continente africano celebra sua negritude com importantes nomes da música daqui e de fora, em uma variedade de gêneros e ritmos de origem africana.

A apresentação gratuita do filho caçula de Fela Kuti, criador do Afrobeat e maior astro da música da África, acontece em um dos cartões postais da cidade: a Praça Cairu (futura praça Maria Felipa), próximo ao porto da cidade e onde estão localizados o Mercado Modelo e o Elevador Lacerda.

Um excelente cenário para a cidade reafirmar sua conexão histórica com o continente africano, de onde foram trazidos milhões de seres humanos sequestrados, entre os séculos XVI e XIX, e que trouxeram para cá, em meio à dor da travessia atlântica, uma resistente cultura impregnada nos corpos, que por aqui logo se expressou em danças e ritmos fundamentais para o enfrentamento à violência colonial.

Criador do Afrobeat, Fela Kuti despertou o mundo para a música e a política na Nigéria

Seun Kuti: herdeiro do afrobeat nigeriano
Seun Kuti: herdeiro do afrobeat nigeriano Imagem: Divulgação



Seun Kuti, que herdou o talento e ousadia do pai, manteve o legado, inclusive tocando com músicos que integravam a banda com a qual Fela Kuti revolucionou a música africana.

A partir da década de 1960, o multi-instrumentista despertou o mundo para o Afrobeat, uma fusão de jazz, funk, rock, highlife e outros ritmos africanos, chamando atenção também para os problemas políticos da África, em especial da Nigéria, onde nasceu, criou uma extensa família (entre os filhos, o também músico Femi Kuti), produziu sua arte, incomodou as autoridades e morreu em 1997.

Para conhecer mais sobre esse artista incrível, vale muito a leitura da biografia "Fela, Esta Vida Puta (2011)", do amigo e etnólogo cubano Carlos Moore e também assistir ao filme "Meu Amigo Fela (2019)", do cineasta Joel Zito Araújo, baseado na obra de Moore, que reafirma a genialidade musical e também o ativismo político de Fela Kuti.

Mesmo buscando uma carreira de independência em relação à obra do pai, Seun Kuti não deixa de homenagear Fela em todos os seus shows. Em Salvador não será diferente. A festa em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, contará ainda com show do rapper Baco Exú do Blues, expoente da música negra, que tem na cultura hip hop as bases para diálogos com outros ritmos e influências que formam a diversidade musical brasileira.

No dia seguinte, 25, a capital baiana recebe a edição comemorativa dos 20 anos da República do Reggae, anunciado como o maior festival da América Latina dedicado à música jamaicana. Entre as atrações, os veteranos Burning Spear e Max Romeu, pioneiro do Lyrics, subgênero do reggae, além de Reemah, Alborosie, as bandas Groundation e Ponto de Equilíbrio e a prata da casa, o baiano Edson Gomes, o reggaeman mais popular do país.

Todos os anos, a República do Reggae é ponto de encontro dos amantes da cultura reggae, que chegam a Salvador em caravanas de diferentes cidades do país, para curtir a música que fala de paz, de liberdade e consciência negra.

Afropunk, maior festival de música negra do mundo

Há uma semana, Salvador sediou a terceira edição brasileira do Afropunk, festival de arte negra criado em Nova York e que percorre cidades do mundo, como Londres, Paris e Joanesburgo, exaltando a auto estima das pessoas negras. Foram dois dias (18 e 19/11) de shows espetaculares no palco e um desfile de estilos e atitudes na plateia, que abusaram de referências africanas em tecidos, pinturas, tranças e adereços, com a ousadia de transparências e corpos à mostra, na afirmação de uma estética afrofuturista.

Entre as presenças internacionais, o Afropunk Bahia contou com a música de Victoria Monét, destaque do pop e R&B norte-americano, a cantora britânica Leigh-Anne, ex-integrante da girlband Little Mix, a angolana Noite e Dia e o guineense Patche di Rima.

Os artistas africanos foram convidados da banda Baiana System, no show de encerramento do festival, em um diálogo entre a guitarra baiana e os ritmos contemporâneos do continente-mãe, como o Kuduro de Angola.

Entre as 30 atrações da edição deste ano, o Brasil foi muito bem representado na diversidade de gêneros musicais e gerações de artistas. Das jovens Tasha & Tracie, do trap dos irmãos Kayblack e MC Caverinha à veterana Alcione, que trouxe a bateria da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e mostrou que dialoga com públicos de todas as idades.

Auto estima e muito estilo desfilaram no Afropunk Bahia 2023
Auto estima e muito estilo desfilaram no Afropunk Bahia 2023 Imagem: Matheus Leite / Afropunk Bahia

O público do festival foi brindado com grandes apresentações como o inventivo Alfagamabetizado, do genial e inquieto Carlinhos Brown e o Tecnoshow da paraense Gaby Amarantos, que comemorou no Afropunk Bahia o Grammy Latino 2023 de Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa. Tiveram também performances marcantes de Djonga, Iza, Majur, Vandal, o funk de Tati Quebra Barraco, o pagodão de O Kanalha e, como não poderia faltar em uma festa em solo baiano, os tambores do Olodum.

Revolução dos Tambores

É sempre bom lembrar que os tambores foram fundamentais na revolução cultural negra que ocorreu em Salvador a partir da década de 1970, quando movimentos artísticos se uniram às lutas políticas por direitos da população negra.

As referências vindas dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e o eco das revoltas pela independência dos países da África frente ao poder colonial europeu se misturaram nas ruas de Salvador, encontrando um solo fértil já adubado pelas heranças africanas e indígenas preservadas em manifestações culturais e religiosos como o candomblé e a capoeira.

Dessa mistura de ritmos e aspirações por cidadania, nasceu em 1974 o bloco afro Ilê Aiyê, que levou para a arena do carnaval sons, cores e reivindicações de um povo que não aceitava ser oprimido. O desfile do Ilê Aiyê no Carnaval de Salvador marcou definitivamente não só a música produzida na cidade, mas a afirmação da identidade negra, que se espalhou pelo país. Daí vieram o Olodum, em 1979, o Muzenza, em 1981, o samba reggae criado pelo Mestre Neguinho do Samba, gerando o Axé Music e outras inovações estéticas e musicais como a Timbalada e o pagode de grupos como É O Tchan e Harmonia do Samba.

A continuidade dessa trajetória musical, o Brasil conhece em passos, hits e muita festa, que atraíram o interesse de astros negros como Michael Jackson e Jimmy Cliff. Até a estrela norte-americana Beyoncé incluiu Salvador na turnê que realizou no Brasil em 2009, pouco antes de se tornar um fenômeno mundial.

Salvador segue sendo esse caldeirão de misturas rítmicas, permitindo que o talento dos artistas locais se conecte à arte do mundo, por meio de pontes sonoras erguidas pela identificação que está no tom da pele, na ginga dos corpos, nos evidentes traços fenotípicos, mas sobretudo, na memória de resistência ancestrais compartilhada pelos descendentes da África e da diáspora negra, que têm em Salvador seu lugar de encontro permanente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes