Andreza Matais

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Reportagem

Sob Lula, órgão que combate lavagem tem menor orçamento em 5 anos

Sob o governo Lula (PT), o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) tem o seu menor orçamento dos últimos cinco anos, e o presidente do órgão, Ricardo Liáo, já fala em fazer "das tripas coração" para conduzir a unidade responsável por prevenir e combater a lavagem de dinheiro no país.

A asfixia de recursos do Coaf ocorre em um momento em que o crime organizado se infiltra em todas as atividades reguladas, e autoridades já falam que o Brasil caminha para se tornar um narcoestado.

Está difícil de a gente conseguir sobreviver, mas vamos fazer das tripas coração e tentar superar isso aí.
Ricardo Liáo, presidente do Coaf

O chefe do órgão destacou o corte de recursos a uma plateia de especialistas em lavagem de dinheiro em evento realizado neste mês na Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo.

Para este ano, o Coaf informou ao UOL que tem R$ 17,6 milhões, quase 30% a menos do que dispunha no ano passado para despesas discricionárias (não vinculadas a gastos obrigatórios, como folha de pagamento).

É o menor valor desde 2019, considerando os números atualizados pela inflação. Dados do Siafi, o sistema que registra os pagamentos do governo, mostram que já foram empenhados R$ 8,4 milhões para o ano.

Os recursos pagam despesas como diárias, passagens aéreas, contribuições para organismos internacionais (fundamentais para troca de informações de inteligência), serviços de tecnologia de informação e equipamentos. Em 2023, o Coaf tinha R$ 23,6 milhões para esse tipo de despesa —R$ 6 milhões a mais do que neste ano— e utilizou 99,8% do valor.

Lava Jato e rachadinhas

Com autonomia operacional, a unidade de inteligência financeira atua na identificação e confisco de recursos provenientes de crimes como tráfico de drogas, de armas, de pessoas e sequestro. É consenso entre especialistas que atacar o lucro do crime é o caminho para estrangular organizações criminosas.

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O secretário nacional de segurança pública, Mário Sarrubbo, disse ao UOL que o Coaf tem "papel fundamental no combate ao crime organizado" e que a redução no orçamento pode ser resolvida com boa gestão.

"A diminuição do orçamento é uma realidade que todos nós enfrentamos hoje no Brasil, em todas as esferas. Com boa gestão, nós confiamos que o Coaf vai continuar exercendo o seu papel fundamental nesse contexto de identificar movimentações financeiras suspeitas", complementou Sarrubbo, que é ex-procurador de Justiça de São Paulo.

Criado há 25 anos, no governo FHC, o Coaf produziu relatórios que subsidiaram as principais investigações de lavagem de dinheiro do país.

O órgão abasteceu, por exemplo, a Lava Jato, com inúmeras informações, entre elas, movimentações atípicas de Lula e seus filhos, e também a investigação que mostrou rachadinhas da família Bolsonaro. As condenações que Lula sofreu, nos casos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, foram anuladas pelo STF por falhas processuais. A Justiça anulou as provas no caso das rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro (PL) no Legislativo do Rio de Janeiro pela mesma razão.

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Imagem: Arte/UOL

Vaivém do Coaf e disputa política

O Coaf experimentou uma expansão quando o então ministro da Justiça Sergio Moro transferiu o órgão para a sua pasta. Nos primeiros meses do governo Bolsonaro (PL), o orçamento e o número de servidores dobraram.

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Liáo reconhece o movimento como importante, mas observa que ele tragou o órgão técnico para uma disputa política: em pouco tempo, a proposta de Moro foi derrotada no Congresso, e o Coaf voltou para o Ministério da Economia.

No governo Lula, o órgão foi parar no Banco Central.

"Quando saímos da Fazenda em 2019, com a vinda do ministro Moro, com toda referência e reverência com que [o Coaf] era tratado, tivemos uma ampliação de servidores de 35 para quase 70 em coisa de seis meses. Hoje somos 93 servidores [desde 2023]. Tivemos [com Moro] a condição do poder de requisição [de servidores de outras áreas], que nos facilitou muito em trazer força de trabalho", disse o chefe do Coaf na palestra.

Liáo observa, contudo, que "a volta para o BC garantiu conforto e autonomia técnica" ao órgão.

O orçamento do Coaf é repassado pelo Banco Central, que também sofreu redução de receitas neste ano. O governo repassou R$ 63,2 milhões a menos para a instituição em relação ao ano passado, o que consequentemente tem efeito cascata dentro das unidades do banco.

Uso do Coaf em disputa na Justiça

Ao apontar onde foi parar dinheiro fruto de corrupção, o Coaf vê com frequência o questionamento da utilização de seus relatórios.

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Em 2019, o STF chegou a suspender todos os processos que tivessem relatório do Coaf que instruíssem processos sem autorização judicial prévia, o que surpreendeu toda rede internacional de órgãos de prevenção de lavagem, como a organização intergovernamental Gafi (Grupo de Ação Financeira), segundo o presidente do Coaf.

A Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu posteriormente que a polícia poderia pedir compartilhamento de dados ao Coaf sem autorização prévia da Justiça, desde que mantido o sigilo das informações.

Já neste ano o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu o contrário, e a Primeira Turma do Supremo voltou a confirmar sua posição neste mês. O assunto, contudo, ainda não foi encerrado. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) recorreu e caberá ao plenário do Supremo dar a palavra final.

Produção cresceu sem ampliar funcionários

No primeiro ano do governo Lula 3, o Coaf recebeu 2,2 milhões de COS (Comunicados de Operações Suspeitas). Isso ocorre, por exemplo, quando uma loja suspeita de indício de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo ou de outros ilícitos na transação de seu cliente. Outras 5,4 milhões de comunicações foram enviadas informando sobre compras de bens de luxo em dinheiro vivo.

Essas investigações resultaram em 16.411 RIFs (Relatórios de Inteligência Financeira) no ano passado, produzidos quando as suspeitas de lavagem se confirmam. Uma etapa feita manualmente. O orçamento do Coaf para despesas com funcionários é o mesmo do último ano (R$ 16,7 milhões).

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O Coaf supervisiona quatro atividades: 1) transação de bens de luxo (veículos, aviões, barcos, helicópteros, etc.); 2) negociação de passes de atletas e artistas; 3) transação de joias (pedras e metais preciosos) e 4) factoring (operação financeira pela qual uma empresa compra os créditos a receber -o setor não é supervisionado pelo BC).

Nos últimos dois anos, o número de transações suspeitas de lavagem de dinheiro envolvendo bens de luxo saltou de 9.146 para 14.755 somente considerando as comunicações recebidas pelo Coaf de empresas que suspeitaram das transações de seus clientes. Para se ter uma ideia, em todo período de 1998 a 2021, foram 19.147 desse tipo.

Os informes sobre compras suspeitas de joias e pedras preciosas aumentaram de 1.477 para 2.214 suspeitas no mesmo período.

Coaf diz que 'trabalha no limite'

Em nota, o Coaf afirmou que "trabalha no limite", mas que "o orçamento para 2024 não obrigou um enxugamento da estrutura" do órgão.

"O Coaf, como qualquer instituição do poder público, realiza seus trabalhos no limite dos recursos, inclusive orçamentários, de que dispõe para tanto", informou o órgão. "Não há notícias de cortes ou diminuição no montante previsto para a execução de despesas obrigatórias, dentre as quais estão aquelas relativas à folha de pagamentos de pessoal", concluiu.

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Tráfico de madeira e criptoativos

Neste ano de orçamento enxuto, as ações do Coaf estão voltadas a apertar o cerco em torno de lavagem de dinheiro envolvendo crimes ambientais e virtuais -tráfico de madeiras, minerais e criptoativos.

Segundo o secretário Nacional de Segurança Pública, o crime ambiental é a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo -gera entre US$ 110 bilhões e US$ 281 bilhões, perdendo só para entorpecentes e contrabando.

No total, afirmou, 6% dos casos de lavagem de dinheiro nos países amazônicos se relacionam a mineração ilegal de ouro e extração de madeira e desmatamento.

"Foi isso que chamou a atenção do PCC em Roraima, que viu nas áreas de garimpo no estado a oportunidade de expandir os seus negócios, de lavar o seu dinheiro e continuar explorando o tráfico de drogas, de armas, fazendo algo comum na região que é a prestação de serviço de proteção daquelas atividades. Isso está muito ligado à corrupção de agentes públicos", disse Sarrubbo em palestra na Faculdade de Direito da USP, mesmo evento que teve a presença do presidente do Coaf.

No diagnóstico do secretário, atacar "a lavagem de dinheiro é a saída para estrangular o crime organizado".

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do que informava a coluna, Lula não foi absolvido pelo STF. Os processos foram anulados. O texto foi corrigido.

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