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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Covid: Com alta subnotificação, país bate 30 milhões de casos registrados

Centro de testagem montado em Manaus no início do ano - Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas
Centro de testagem montado em Manaus no início do ano Imagem: Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas

Colunista do UOL

05/04/2022 04h00

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O Brasil alcançou ontem a marca de 30 milhões de casos de covid-19 com uma certeza: a de que esse número é subnotificado. Apesar de ser impossível cravar um percentual de casos não notificados, especialistas ouvidos pela coluna afirmam que o número de doentes é mais que o dobro do dado oficial.

"Há estimativas de que o total de casos registrados seja algo entre 30% a 40% do número real. É uma estimativa plausível, mas difícil de precisar; sem contar que temos também as reinfecções", afirma Flávio Fonseca, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.

Ao longo da pandemia, o país testou pouco e não fez plano nacional de monitoramento ou testagem em massa. Fonseca conta que, por isso, o número de casos no Brasil sempre foi um dado de baixa precisão.

Testamos pouco. Isso ocorreu, primeiro, porque a gente não tinha a infraestrutura; e tivemos também a dificuldade na obtenção de testes porque a grande maioria é importada --em momentos de pico ainda teve a dificuldade de compra
Flávio Fonseca, Sociedade Brasileira de Virologia

Outro ponto que Fonseca ressalta é que, como mais da metade da população brasileira é dependente do SUS (Sistema Único de Saúde), houve uma desigualdade na testagem. "Muitas vezes [o SUS] não tinha testes em quantidade necessária, e a grande massa da população acabou não testada idealmente", completa.

Uma das provas de que o Brasil testa pouco são os dados da Find, a aliança global criada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em resposta à pandemia.

Entre os meses de janeiro de 2021 e de 2022, o Brasil realizou 0,58 teste por cada mil habitantes ao dia. No mundo essa média foi quase o dobro, de 1,1.

Num ranking global, o Brasil aparece apenas na 108ª posição entre 173 países.

Índice de testage de Covid-19 - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Sem plano ou protocolo nacional

Sem um plano nacional, faltou padronização ao número de casos positivos informado no país, diz a epidemiologista e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Ana Brito.

"Esse número foi a soma de testes feitos com técnicas diagnósticas diferentes, não houve uniformidade de protocolos de testagem. O PCR rápido passou a ser usado apenas do ano passado para cá. A gente acompanhou a pandemia pelos marcadores terminais de infecção [hospitalizações]", diz.

Brito conta ainda que, para traçar um perfil da subnotificação, seria necessário entender qual foi a cobertura da testagem da nossa população —o que nunca foi feito.

"A gente não tem uma base demográfica para saber quem foram e qual o percentual de pessoas testadas. Sem contar que não fizemos rastreamento. Para traduzir exatamente esse número tínhamos de ter as informações desses 30 milhões de casos positivos", aponta.

Teste de anticorpos vendidos em farmácias - iStock - iStock
Teste de anticorpos vendidos em farmácias
Imagem: iStock

Segundo Isaac Schrarstzhaupt, coordenador na Rede Análise Covid-19, existe uma definição do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, do governo dos EUA), por exemplo, de que percentuais acima de 5% de positividade dos testes apontam para casos subnotificados. "Ou seja, quanto maior a positividade, maior a subnotificação", diz.

No Brasil não há um controle nacional. O principal parâmetro no país é o sistema GAL (Gerenciador de Ambiente Laboratorial), do Ministério da Saúde, mas que abrange apenas os dados dos laboratórios centrais estaduais e alguns colaboradores.

Até 26 de março, foram inseridos no sistema 29,2 milhões de exames, com 9,1 milhões positivos (31% de positividade). O sistema, porém, não contabiliza os dados da maioria dos laboratórios privados e farmácias.

Segundo o GAL, em nenhuma semana até hoje houve positividade abaixo de 5%, como preconiza o CDC, o que indica que subnotificamos casos durante toda a pandemia.

O menor percentual de positividade desde fevereiro de 2020 ocorreu na penúltima semana de 2021, quando ficou em 5,24%. O mais alto veio com a ômicron, na quinta semana de 2022, com incríveis 54,4% de casos positivos. Na última semana, com a redução da circulação viral, esse percentual caiu para 6,7%. Isaac diz que a variação não representa, necessariamente, uma queda da subnotificação, mas pode refletir um aumento da testagem ou redução da transmisssão.

Além de difícil de quantificar, o pesquisador Miguel Nicolelis lembra que não houve um percentual único da subnotificação durante toda a pandemia.

No pico da ômicron, por exemplo, a subnotificação estava em pelo menos 10 vezes, podendo chegar a até 20 vezes. Hoje ainda pode estar por aí o pior porque pararam de testar"
Miguel Nicolelis

Onda da ômicron aumentou mais a mortalidade na UTI infantil do que outros picos da pandemia - Hospital Albert Sabin - Hospital Albert Sabin
Onda da ômicron aumentou mais a mortalidade na UTI infantil do que outros picos da pandemia
Imagem: Hospital Albert Sabin

Para o microbiologista e divulgador científico Átila Iamarino, está cada vez mais difícil quantificar a subnotificação de casos —e isso não ocorre só no Brasil. No começo da pandemia, explica, era possível estimar a subnotificação pela detecção de anticorpos.

"Em 2020, você podia estimar a subnotificação —que foi violenta em todos os países— por prevalência. Considerando os testados que tinham anticorpos contra a covid, você conseguia chegar a uma estimativa", explica.

Conforme o tempo foi passando, diz Iamarino, ficou mais difícil chegar à estimativa porque a imunidade da doença não é permanente. "Então essas pessoas voltam a pegar o vírus, e elas vão ter exame positivo, mas tiveram covid mais de uma vez. Em 2021 a coisa ficou pior porque, além da pessoa pegar, a gente teve a CoronaVac que desperta os mesmos anticorpos que o vírus", pontua.

Outro episódio que prejudicou ainda mais a notificação oficial foi a dupla epidemia de gripe e covid-19 entre o final de 2021 e início de 2022. Nesse período, lembra Iamarino, o Datafolha fez uma pesquisa em janeiro em que estimou que 43 milhões de brasileiros tiveram sintomas de gripe nos 30 dias anteriores ao levantamento. "Aí já estão as pessoas confundindo os sintomas", completa.

Menos salas de testagem

Além de testar pouco, o país tem reduzido o ritmo das testagens pelo sentimento de que a pandemia já acabou, alerta a doutora e professora de doenças tropicais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Vera Magalhães.

Vários postos de testagens foram desfeitos porque os governos desmontaram as unidades, e as pessoas que têm sintomas não mais procuram teste. Com a ômicron, como a maioria dos casos são leves, se não tiver uma testagem massiva, não tem como saber se teve covid e não tem como acompanhar a pandemia
Vera Magalhães, UFPE

Até o autoteste —recém-liberado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e que poderia ser uma boa solução para reduzir a subnotificação— não está sendo usado como política pública no nosso país.

"Ele é caro aqui no país [não menos que R$ 70], e a maior parte da população não tem acesso. Nos países desenvolvidos, nos momentos em que ocorrências estavam em alta, eles foram distribuídos. Essa estratégia serve tanto para que a pessoa não saia de casa e contamine outras, como para entender a situação viral", finaliza.