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Carlos Madeiro

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REPORTAGEM

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Escalada da fome gera 1 milhão de menores com desnutrição no país em 2022

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

12/11/2022 04h00

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Em oito anos de atuação como médica da USF (Unidade de Saúde da Família) de Alto do Moura, na zona rural de Caruaru (no agreste de Pernambuco), a médica Viviane Xavier relata nunca ter visto tantas crianças ou adolescentes com problema de desnutrição.

"Hoje [quarta-feira] mesmo, recebi uma criança que estava em outra cidade, e a família voltou para Caruaru há um mês em busca de trabalho. Está com desnutrição importante, e precisamos enviá-la à UPA [Unidade de Pronto Atendimento] para ser hidratada e, depois, darmos a continuidade do tratamento", conta.

No país, o número de casos de desnutrição de menores atendidos na atenção básica saltou de forma exponencial. Somente até setembro, foram registrados 977 mil diagnósticos, segundo dados do Sisab (Sistema de Informação da Saúde da Atenção Básica), do Ministério da Saúde.

Em agosto, as unidades reportaram 136 mil casos de pacientes de até 17 anos com desnutrição. Para efeito de comparação, em 2015 esse número foi de 27 mil.

Os dados do Sisad, ressalte-se, são restritos aos da atenção básica, que não incluem atendimentos eletivos com especialistas, rede privada e de emergência, por exemplo. Ou seja, não são os dados totais do Brasil.

Mesmo com a alta de casos, um contrassenso: para 2023, o Ministério da Saúde previu apenas no PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) para a área de "segurança alimentar e nutricional" apenas R$ 25.576.805, contra R$ 66 milhões este ano orçados neste ano.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que acompanha a situação e que repassou, para "apoiar e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional infantil, mais de R$ 345 milhões nos últimos anos para incentivar ações e fortalecer a atenção às crianças menores de sete anos de idade e gestantes que apresentem má nutrição no âmbito da Atenção Primária".

Ainda segundo a pasta, atualmente há programas de suplementação com micronutrientes como o Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A e o programa Nacional de Suplementação de Ferro. "O objetivo é prevenir e controlar a carência de micronutrientes na infância e gestação. O monitoramento é feito por meio do acompanhamento do registro de dispensação dos micronutrientes nos serviços da Atenção Primária."

Sobre a menor verba para ações de segurança alimentar, a pasta diz que "está atenta às necessidades orçamentárias e buscará, em diálogo com o Congresso Nacional, as adequações necessárias na proposta orçamentária para 2023".

A desnutrição atrapalha o desenvolvimento infantil, especialmente em crianças de até cinco anos, podendo causar danos irreversíveis.

Os casos de desnutrição, segundo médicos da atenção básica e especialistas ouvidos pela coluna, eram raros, mas passaram a fazer parte da rotina dos atendimentos devido à escalada da fome.

"São crianças que adoecem com mais facilidade do que as outras, pois não têm os nutrientes necessários inclusive para fabricar anticorpos suficientes", explica a médica Viviane.

Médica da unidade de saúde em Caruaru (PE): casos têm de desnutrição aparecem com mais frequência - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Médica da unidade de saúde em Caruaru (PE): casos de desnutrição têm aparecido com mais frequência
Imagem: Arquivo pessoal

"Essa criança [citada acima], por exemplo, vai precisar de nutrição especial, que é muito mais cara e vai precisar ser fornecida pelo SUS, para que recupere seu estado nutricional adequado."

A situação é similar na comunidade Chã da Aldeia, na área rural Chã de Alegria, na zona da mata pernambucana, onde o médico Paulo Vitor Carvalho atua.

Ele afirma que tem visto mais casos de desnutrição. "A maioria está realmente em estado de insegurança alimentar. Não sabe o que vai comer na próxima refeição, então é difícil traçar um perfil dietético. Eles afirmam que comem até osso, carcaça de galinha. A situação é preocupante", diz.

Médico Paulo Vitor Carvalho conversa com pacientes no posto onde atua em Chã da Alegria (PE) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Médico Paulo Vitor Carvalho conversa com pacientes no posto onde atua em Chã da Alegria (PE)
Imagem: Arquivo pessoal

Ele cita que tem sido comum, por exemplo, encontrar doenças da infância relacionadas à deficiência de vitaminas.

"Fazia muito tempo que não eram vistas e voltaram a ser percebidas pelas equipes", diz. "Essa condição a gente consegue rastrear desde a gestação, no pré-natal. Conseguimos fazer rastreio de restrição de crescimento uterino com alguns métodos até de exame clínico. Tenho sentido aumento, e uma das principais causas é ganho inadequado de peso por parte da mãe na gestação."

Para os médicos, nem sempre é fácil detectar o problema, já que falar da fome ainda parece ser um tabu.

"Elas vêm com outras queixas e na consulta destrinchamos o que está acontecendo. Por ser um tema delicado, muitas pessoas não se sentem à vontade para falar que estão com fome e precisam ser rastreadas pela equipe. Quando atinge a criança, você percebe que a insegurança pegou a família toda", diz.

Para o profissional de ponta fica muito complicado fazer alguma coisa efetiva em relação à fome. Tem que ser política pública do Estado mesmo para garantir cesta básica para essas pessoas."
Paulo Vitor Carvalho, médico

Especialistas veem alta de riscos

A sanitarista e professora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Bernadete Perez afirma que são cada vez mais comuns os relatos de pessoas com fome buscando os serviços de saúde.

"Vemos crianças com insegurança alimentar e nutricional de vários níveis, inclusive graves, que significam fome e desnutrição. Fazia muito tempo que a gente não via uma forma grave de desnutrição", diz ela, que também é vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).

"Hoje, com mais de 33 milhões de brasileiros com fome, eles batem à porta da atenção primária todos os dias. Isso tem piorado muito, principalmente nas regiões Norte e Nordeste."

Ossos doados por ONG de Maceió a famílias pobres - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Ossos doados por ONG de Maceió a famílias pobres
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Segundo Amilton Feitosa, nutricionista, conselheiro do CFN (Conselho Federal de Nutricionistas) e secretário Municipal de Saúde de Água Branca (PI), a desnutrição causa muitos problemas à saúde das crianças.

A curto prazo, as crianças desnutridas ficam mais susceptíveis a infecções e podem ter atraso no desenvolvimento. A médio e longo prazo, crianças que passaram por privação crônica e aguda de alimentação podem desenvolver doenças crônicas como diabetes, hipertensão, insuficiência renal e obesidade."
Amilton Feitosa, nutricionista e conselheiro do CFN

Ele ressalta ainda que há um gasto maior para o SUS por causa das hospitalizações. "Isso tudo pode levar a custos irreparáveis, especialmente o adoecimento dessas crianças na fase adulta, reduzindo sua qualidade de vida, capacidade de rendimento escolar, no trabalho, entre outros", completa.

Alcides Miranda, professor de saúde coletiva da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), completa que a desnutrição nessa fase inicial da vida afeta o chamado "desenvolvimento neuropsicomotor".

"Ele é muito importante para a constituição futura. Um déficit nutricional nessa fase acarreta comprometimentos de longo prazo", explica.

Ele lembra que essa é uma situação que o Brasil conviveu durante séculos e que parecia superada. "Retornou, assim como outras situações, decorrentes da degradação de políticas públicas. Existe a tendência de degradação no estado nutricional de crianças", diz.

Esses números não apareceram pela melhoria dos registros --que às vezes desvenda problemas preexistentes--, até porque não houve aumento de cobertura de área da atenção básica. Ou seja, trata-se mesmo de agravamento da situação socioeconômica."
Alcides Miranda, da UFRGS

Grupo de manifestantes no Rio usa ossos para protestar contra a fome  - Lucas Valença/UOL - Lucas Valença/UOL
Grupo de manifestantes no Rio usa ossos para protestar contra a fome
Imagem: Lucas Valença/UOL

Ao longo dos últimos meses, o UOL relatou uma série de corte de verbas, ações e políticas públicas destinadas ao combate da insegurança alimentar.

Entre os cortes, estão o do programa de doação de leite a famílias pobres do Nordeste e Minas Gerais, o fim da construção de cisternas e a redução na compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar.

Com isso, o país alcançou a marca de 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave, ou seja, com fome.

Segundo dados do documento "Observa Infância", da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), em 2021, o Brasil registrou 2.979 internações infantis por desnutrição, resultando na maior taxa de hospitalizações de crianças menores de um ano desde 2008: 113 hospitalizações para cada 100 mil nascidos vivos.

A alta da desnutrição infantil também foi alvo de nota de alerta da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), que cobra ações em prol de crianças desnutridas na rede de saúde.

Frente ao cenário atual, com o retorno da desnutrição ao cenário pediátrico nacional, torna-se importante a implantação de estratégias multissetoriais, combinadas e amplas, envolvendo todos os setores da sociedade (governo, sociedades científicas, universidades, organizações do terceiro setor e setor privado) para prevenção da desnutrição e tratamento oportuno."
Trecho de nota de alerta da SBP